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O Irlandês: O legado de Martin Scorsese

Scorsese, Pesci, De Niro e Pacino. O conjunto desses nomes soa como os Vingadores do cinema de gângster, e não é por menos. Ambos se consolidaram nas histórias de máfia que traziam um mix interessante entre drama e crime. Enquanto De Niro e Pesci fizeram seus nomes acompanhados de Scorsese, principalmente em Os Bons Companheiros (1990) e Cassino (1985), Pacino trabalhou com Francis Ford Coppola em um das obras mais respeitadas da sétima arte: O Poderoso Chefão (1972). Com isso, O Irlandês esbanja profissionalismo e experiência de seus atores e diretor, contudo, o que mais impressiona é o fôlego admirável da trama, que se transforma em uma verdadeira síntese da filmografia de Martin Scorsese.

Logo nos primeiros segundos, temos um plano-sequência que corre um corredor inteiro para a revelação de um velho Frank Sheeran (Robert De Niro). A partir daí, ele começa a narrar a sua história, que aborda desde sua participação na Segunda Guerra Mundial até sua relação com o presidente sindicalista Jimmy Hoffa (Al Pacino). Aos que estão habituados com as densas e detalhadas narrativas dos filmes de Scorsese, não haverá estranhamento nenhum. O filme anda a passos curtos e lentos, apresentando de forma minuciosa a vida de Frank Irlandês e seu envolvimento com a máfia e os interesses de um sindicato de caminhoneiros. Nesse sentido, torna-se evidente o quão bem trabalhada é a relação entre os flashbacks e a narração de De Niro. Há flashbacks dentro de flashbacks, há relatos de personagens para com a câmera – algo marcante nos filmes anteriores – e também a apresentação dinâmica de novos rostos. Tudo isso acontece sucessivamente em O Irlandês, entretanto, Scorsese mantém a coesão da estrutura do roteiro, sem deixar o filme se perder ao apresentar tantos elementos em tão pouco tempo.

E talvez esta seja a magia de O Irlandês: não perder o fôlego em nenhum instante. O Lobo de Wall Street (2013) é um exemplo de filme que consegue, através de suas longas três horas, manter um nível de conexão com o espectador devido a vivacidade da narrativa. Para as três horas e trinta do filme da Netflix, Scorsese se utiliza do mesmo método para alcançar o êxito de manter o espectador completamente conectado à história e aos seus personagens. Grande parte desse método é a quebra de expectativa causada pelo roteiro de Steven Zaillian, adaptação da obra I Heard You Paint Houses, e pelo planejamento preciso das cenas. Esperando-se um ambiente sério e dramático, nos deparamos com fugas ao humor baseado em diálogos um tanto quanto desconexos em relação ao foco narrativo, semelhantes aos construídos por Quentin Tarantino.

A ambientação é constante nas obras de Scorsese, e aqui ela está deslumbrante. A constituição dos cenários se preocupa com a fidelidade dos locais para com a realidade; as luzes em neon, os típicos restaurantes da época e os carros transformam o filme na verdadeira representação do período. Para acrescentar ainda mais consistência, a trilha de Robbie Robertson cria o clima perfeito, equilibrando-se entre as variadas situações da obra.

Além disso, se utilizam textos para apresentar o destino de alguns personagens, principalmente aqueles que serão os principais condutores. Quando o personagem aparece pela primeira vez, ocorre uma curta pausa e o surgimento de um trecho como: “Nome, morto com três tiros no rosto, em 1980”. Tais inserções ajudam a trazer uma interessante oposição entre a ação e o destino. Ao passo que sabemos o que acontece com certas pessoas, conseguimos entender suas reais situações, mesmo que às vezes seja engraçado como pessoas “tão queridas” são mortas de formas viscerais. Isso demonstra o impacto que Scorsese sabe causar na audiência que acompanha seus projetos.

Quando se tem um roteiro estruturalmente sem defeitos, aliado a uma direção experiente, capaz de articular muitos elementos, fica mais fácil esconder atuações um pouco mais tímidas. Contudo, Joe Pesci, Robert De Niro e Al Pacino acrescentam uma enorme qualidade dramática, – observando que Harvey Keitel também está participando, mas tão pouco quanto se esperava – nos brindando com três atuações absolutamente incríveis, que transmitem o quão engajados estavam para entregar algo acima do nível. Robert De Niro interpreta Frank Sheeran com tamanha naturalidade que assusta. Sua interpretação parece se dividir em três partes: o pai, o mafioso e o velho solitário. Quando é o pai, De Niro simplesmente entrega a representação perfeita dos pais da época, envoltos de uma família submissa e patriarcal, tendo que esconder suas relações com a máfia. Na pele de um mafioso, há certa insegurança e imaturidade do personagem, mas também frieza ao executar alguém.

Além dessas duas camadas, o velho Frank Sheeran consolida a formidável atuação de De Niro. Depois de tantas formas ao abordar seu personagem, o ator guarda uma carta na manga, trazendo vulnerabilidade e experiência para o agora debilitado irlandês. Nota-se como suas preocupações em relação a máfia não condizem com o mundo presente, deixando Frank um tanto quanto inadequado neste período. Ver tantas transformações, acompanhadas do desenvolvimento de Frank, cria laços emocionais entre público e protagonista. Embora tenha tido uma vida carregada de violência e mentiras, presenciar sua velhice é estar consciente de como as decisões durante a vida acarretam em consequências graves ao nosso legado – algo que discutiremos mais para frente.

Outro expoente da filmografia de Scorsese foi, sem dúvida alguma, Joe Pesci. Após tantos anos sem se juntar ao diretor, seu retorno estava sendo muito aguardado. E, para surpresa de quase ninguém, marca forte presença. Interpretando Russell Bufalino, Pesci está representando o estereótipo do senhor de idade mafioso. Um cara experiente e boa vida, que busca deixar os amigos próximos e os inimigos ainda mais. Seus negócios em si parecem meio confusos, porque não se sabe exatamente tudo o que ele comanda, mas, pelos relatos de Frank, devem ser significativos. Talvez a única coisa que fique faltando é a explosão de nervoso, que marcou todos os personagens do ator. A repetição excessiva de fuck’s e a postura meio narcisista ficaram de lados, dando ao ator alguém mais sóbrio e paciente. Existe sua versão mais velha, como a de Frank, e pode-se dizer que também guarda uma ótima dramaticidade.

Apesar destes atores terem tido ótimas performances, os holofotes centram-se em Jimmy Hoffa, que ganhou a vida através de Al Pacino. Por aparecer menos que De Niro e ter sua aparição lá para quase um terço do filme, esperava-se uma atuação mais tímida e contida do ator. Engano meu, porque, além da importância inerente do personagem para com a trama, Al Pacino nos presenteia através de uma das melhores atuações de sua carreira até aqui. Dito anteriormente, o que surpreende em O Irlandês é o fôlego de alongar uma trama por mais de três horas, além das surpreendentes quebras cômicas. O principal causador desse efeito é o próprio Al Pacino, já que sempre surpreende com algum traço de seu personagem. Mesmo que seja excêntrico, estratégico e totalmente orgulhoso, o presidente sindicalista guarda certa impulsividade. Suas motivações e ideais políticos também acrescentam na caracterização. Se Joe Pesci está mais contido, alguém deve soltar a voz e os fuck’s. A partir dessa impulsividade, o personagem se torna uma caricatura política e dita os tons do ambiente em que participa, principalmente na hora dos discursos inflamados.

Deixando explícita a qualidade dos atores, do roteiro e da direção, fica claro que The Irishman é ótimo e estará concorrendo aos grandes prêmios do ano que vem. Apesar disso, não pode se negar o quão bonito Scorsese trata sua carreira. O filme não aparenta ser uma homenagem aos tantos anos do diretor, mas sim a síntese de sua filmografia. É o resultado de todas as experiências e estilos, que foram se alterando ao longo do tempo, desde Taxi Driver (1976) até Os Infiltrados (2006), do Rei da Comédia (1983) até ao A Invenção de Hugo Cabret (2011). Sua colaboração com a sétima arte foi fundamental para tratar o cotidiano nos cinemas. Trabalhar com questões reais e práticas, sem fantasias e super-heróis, mas com aqueles que vivem na realidade patética que é o mundo. Há certa cena que Frank Sheeran já está bem debilitado e vai para a igreja rezar com o padre – um símbolo que sempre esteve presente na vida do diretor – na esperança de superar seu legado de criminoso. A maneira ampla com que se explora as consequências da vida do protagonista nunca foi tão trabalhada no passado do diretor, porém, sua vasta experiência aparenta querer discutir sobre o destino, colocando veteranos do cinema para mostrar o quão difícil é a manutenção do legado.

O Irlandês esbanja competência e fôlego, abordando drama, máfia, humor e política em mais de três horas. Com três atores lendários, a história tem o objetivo de revisitar o passado da conjuntura mafiosa que influenciava sindicatos e a política americana, no entanto, mirando no presente, deixando marcadas as consequências. Enquanto Frank Sheeran se mostra inadequado por conta de seu legado, tentando constantemente escapá-lo, Martin Scorsese caminha pela trajetória contrária de seu personagem, porque, aparentemente, seus últimos dias de vida não serão lamentando, mas valorizando o seu legado a partir da única coisa que o transformou no que é: fazer filmes.

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Doutor Sono: Uma continuação decente e respeitosa

Dirigir a continuação de uma das obras mais consagradas do cinema não parece ser tarefa fácil. Ainda mais quando o seu antecessor é simplesmente o trabalho de um dos maiores diretores da história. Afinal, como construir e elaborar uma narrativa que consiga ter pernas próprias, sem depender de comparações com o passado? Doutor Sono é a resposta surpreendente e consciente de Mike Flanagan; reverenciar e respeitar o passado, contudo, ter coragem de desenvolver temáticas contemporâneas e ideias inovadoras. Embora seja adaptação do livro de Stephen King, a obra se apega à concepção estética de Stanley Kubrick,  além de construir novas abordagens.

Ouvir os famosos acordes da trilha de O Iluminado (1980) é algo que arrepia até mesmo aqueles que desconhecem o filme. Essa memória icônica está presente logo nos segundos inicias de Doutor Sono, já deixando claro o quão integrado sua história está com a do antecessor. Adaptando o livro de mesmo nome, a narrativa acompanha Danny Torrance (Ewan McGregor) após mais de 30 anos do incidente no Hotel Overlook, um homem que está tentando tratar seu alcoolismo, ao mesmo tempo em que guarda o segredo de sua “iluminação”. A conexão entre os dois filmes é parte integrante da obra, mesmo com novos personagens e situações, os conflitos internos do protagonista estão centrados nos acontecimentos passados e, constantemente, a narrativa retoma esses momentos por meio de alucinações e flashbacks, que recriam cenas exatas de O Iluminado – com atores diferentes.

A necessidade que Flanagan tem de usar o estilo único de Kubrick não demonstra só competência – também expõe coragem. Seja na construção idêntica dos cenários, ou seja na recriação de cenas memoráveis, o diretor tem muito respeito com a concepção estética de Kubrick. Há um certo entendimento sobre o quão importantes são as composições cinematográficas para a criação da atmosfera e do ambiente em torno dos personagens. Nota-se como ocorre as rimas entre este e O Iluminado – só um exemplo para não dar muitos spoilers, o escritório em que Danny tenta arrumar emprego é muito semelhante, nas cores e na arquitetura, da sala em que o pai, Jack (Jack Nicholson), aceita o trabalho no hotel. Além disso, precisa ser mencionado o uso excepcional das técnicas de montagem e de movimentação de câmeras, que são idênticas às utilizadas por Kubrick; as transições de cenas através do crossfade e o uso de panorâmicas e travellings, quase sempre explorando as passagens dos personagens entre os cenários.

Enquanto o filme trata de abordar de forma respeitosa seu antecessor, há a introdução de novas temáticas e personagens. Principalmente as duas protagonistas, Abra (Kyliegh Curran) e Rose (Rebecca Ferguson), que agregam à história por serem a verdadeira distinção entre bem e mal. O embate entre as duas, já que Abra possui uma poderosa iluminação, e Rose se alimenta a partir da morte dos iluminados, apresenta um tratamento visual impressionante. A luta centra-se em um plano mais espiritual e ritualístico, favorecendo a utilização de sequências que abordem elementos reais de forma metafórica. Como, por exemplo, arquivos extensos representando as memórias.

Apresentando um elenco feminino fortíssimo, outra adição, que só aparenta ser de menos importância, é a atriz Emily Alan Lynd. Sua personagem, Snakebit Andi, não é uma simples iluminada que tenta esconder seus poderes e “capacidades psíquicas”, mas sim uma combatente diante dos abusos e da pedofilia praticada por homens adultos. O próprio discurso da personagem está muito ligado com a questão feminista, deixando claro a necessidade que ela tem de marcar suas “vítimas” como uma forma de os envergonharem publicamente. O Iluminado apresentava questionamentos semelhantes, contudo, seus debates eram muito mais implícitos devido a alta capacidade que Kubrick tinha de abordar o tema. Dessa maneira, Doutor Sono expande as barreiras do que é ser iluminado, não se limitando apenas em um poder inexplicável, porém, em uma possível ferramenta social.

E, obviamente, o título Doutor Sono não é por acaso, porque Danny entende sua iluminação além dos simples poderes. Mesmo assim, há certa relutância por parte dele em usar suas habilidades devido ao passado envolvendo seu pai e o Hotel Overlook. Além disso, seus problemas abordam questões reais e práticas como o alcoolismo, algo que o personagem está constantemente tentando escapar. Fica claro o como a obra articula a história de Danny com solidão e melancolia; tendo seu quarto semelhante à uma prisão psicológica. A atuação de Ewan McGregor reforças esses sentimentos e angústias, criando uma complexa dimensão do indivíduo.

Ao passo em que nos aproximamos da reta final, as referências ao Iluminado são quase inevitáveis. Com isso, Doutor Sono cria um terceiro ato que guarda ação, violência e sustos, mas sem deixar escapar o foco narrativo, que é a densa camada psicológica de todos os personagens. Todos ali enfrentam dores próprias e questionamentos, mas Danny é aquele que deve enfrentar seu passado. Quando tudo parecia levar a um final genérico, há um importante encerramento de um ciclo, que transmite a ótima química entre Abra e Danny, e a sensibilidade do diretor ao resolver as profundas e dramáticas dificuldades de seus personagens.

Doutor Sono consiste em uma sequência decente e respeitosa do material original. Tendo consciência da importância de seu antecessor, o filme tenta recriar de forma contemplativa a linguagem de Kubrick. Contudo, Mike Flanagan não se intimida em abordar e expandir temas que conversam com a época em que vivemos. Enquanto O Iluminado apresentava a insanidade e a prisão psicológica de Jack, Wendy e Danny, a nova história mostra como combatermos nossos demônios, sejam eles no plano real ou espiritual, emaranhados na densa teia psicológica do ser humano.

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Animais Noturnos (2016): Interpretação ilimitada

O que seria da arte sem o seu público? Talvez fosse apenas um artifício estético de contemplação e nada mais do que isso. Os limites de uma obra artística são ditados pelos seus respectivos apreciadores. Observar, interpretar e, consequentemente, expandir os significados da arte, são funções exclusivas do público. E esses pensamentos estão, provavelmente sempre, ligados às experiências e ao estilo de vida do espectador. Isto é, a observação da arte depende de um repertório próprio, único e estritamente pessoal. Nossas visões de mundo dependem das nossas vivências. Animais Noturnos trabalha com essa premissa, não dessa maneira tão direta, mas com o trabalho minucioso e cuidadoso de Tom Ford.

Amy Adams é a escolha perfeita para o papel de Susan Morrow, uma renomada profissional do mundo artístico, que trabalha no planejamento e na comercialização de exposições. Inclusive, é casada com um homem influente – fato relevante. Embora a sua vida aparenta ser estável, isto não reflete o vazio emocional sentido pela personagem. Outro elemento que nunca está exposto de modo tão visível em um primeiro momento, mas que vamos desvendando aos poucos pelo o que a obra nos mostra. E Amy Adams atua impecavelmente por transmitir a postura que Susan tenta manter, ao passo em que seu emocional demonstra-se fragilizado. A atriz tem expressões únicas para certas passagens, que remetem tanto as reflexões, quanto as incertezas de Morrow para com seu casamento e trabalho.

Após estabelecer as condições psicológicas, ocorre o ponto de partida. Susan recebe o livro do ex-marido Edward (Jake Gylenhall), intitulado Animais Noturnos, e embarca na narrativa densa e complexa proposta por ele. E, essencialmente, o filme é a leitura do livro que tem a sua história imaginada do ponto de vista da moça. Quando a leitura se inicia, a obra parece se dividir em duas, não só por apresentar narrativas que, aparentemente, são distintas, mas também porque se distinguem em tom. Enquanto a história de Susan remete a um padrão rigoroso, reflexivo e sereno, o livro é brutal, frio e deliberadamente dramático. Animais Noturnos – o conto – apresenta a família composta por um casal, Tony e Laura (Isla Fisher), e sua filha India (Ellie Bamber), que se preparam para uma viagem de carro. Na estrada, os três se desentendem com um grupo de amigos, entre eles o Ray Marcus (Aaron Johnson). A partir daqui, a família fica em uma situação grave, que guarda possíveis consequências incuráveis.

O fascínio está em como Tom Ford brinca sobre a forma da interpretação. Os personagens dos livros tem rostos familiares, atribuídos pela imaginação de Susan; Tony tem o rosto igual de Edward, – sim, Gylenhall interpreta dois personagens, e ambos brilhantemente – Laura se assemelha com a figura da protagonista, e India não aparenta ter uma conexão com alguma personalidade apresentada. Este imaginário não é atoa, porque a obra consiste na abordagem psicológica da leitora, que aplica seus dramas pessoais na trama obscura do livro. E, para embaralhar ainda mais informações, Ford nos brinda com flashbacks do mundo real, que recontam um passado confuso, porém esclarecedor.

Desse modo, as confusões providas pela junção do passado, do presente e do livro, criam uma profundidade que se desenrola aos poucos, culminando em uma trajetória árdua que explora o íntimo de Susan. Por conta disso, vemos que a produção artística do ex-marido mexeu com seu emocional e tratou de impacta-la, fazendo-a adquirir uma nova perspectiva para sua ideia de arte. O processo criativo de Edward afeta diretamente a satisfação pessoal que Morrow nunca encontrou nas exposições e na vida. Então, a interpretação diante da narrativa quebra barreiras íntimas causando certa transformação, nunca explícita.

Algo que garante as mudanças durante o filme é a técnica empregada por Ford em abordar os personagens com solidão, pessimismo e tristeza. Não há sequer um que fuja desses aspectos, seja pela câmera próxima aos olhares e rostos, ou pela situação em que se encontram. Fica a menção para o Detetive Bobby, que, além de ser interpretado pelo Michael Shannon com maestria, apresenta um desprendimento social e beira ao niilismo.

Animais Noturnos tem sua essência baseada na interpretação da arte, e como esta pode ser decisiva em determinadas circunstâncias.  No final, se Ford coloca sua protagonista para entender o livro por ela mesma, ele impõe ao espectador que faça o mesmo, colocando a veracidade do filme inteiro em dúvida, já que só estamos presenciando um único ponto de vista. Assim sendo, o desdobramento e as surpresas da conclusão ficam só em nossas cabeças, deixando clara a força da expressão do imaginário na arte. Afinal, o que seria dela sem o seu público?

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Ad Astra: Uma jornada ao não tão desconhecido

Sintetizar os temas de Ad Astra: Rumo às Estrelas seria um tremendo erro de minha parte. Não só por menosprezar o ótimo trabalho do diretor James Gray, mas também por querer simplificar questões que exigem engajamento do espectador para decifrá-las e compreendê-las. Portanto, é bom deixar claro que o filme aborda diversas temáticas difíceis para serem absorvidas de uma vez, e que devem impactar as pessoas de modos distintos. Mesmo assim, há alguns momentos que devem nos tocar de uma maneira muito semelhante, porque condizem com a nossa necessidade inerente de autoconhecimento.

O filme tem Brad Pitt como o protagonista Roy McBride, um astronauta altamente competente e que guarda uma influência familiar dentro do trabalho: seu pai. Interpretado por Tommy Lee Jones, Clifford é um dos astronautas mais conhecidos na história americana por seus trabalhos referentes à exploração de vida extraterrestre. Após anos dado como morto, o governo adquire pistas de que ele possa estar vivo, – além de ter relação com uma possível ameaça à Terra – e decide enviar o próprio filho para tentar se comunicar com o pai.

A sequência que presenciamos a partir daí é a jornada íntima de Roy em busca do pai, mas também à procura de respostas em relação a si próprio. E esta é uma beleza nítida na trama de Ad Astra, porque apresentas duas jornadas que se complementam, mas partem para objetivos diferentes. Enquanto um se esforça e trabalha para alcançar um conhecimento que vai além da humanidade, o outro encontra-se em resolver sua própria humanidade.

Este esforço de Roy é o que garante a intensidade da dramatização da história. Desde os primeiros minutos, o personagem narra sua história e transmite um estado vazio emocionalmente. Seu olhar, suas expressões, e até mesmo a forma de andar, não conversam com o prestígio que ele tem nas divisões da NASA. Há um incômodo constante pouco explicado, criando uma atmosfera claustrofóbica ao seu redor. Em todo momento ele quer fugir, escapar daquela vida, e o filme nos mostra tantas memórias e pensamentos do protagonista, que nos impede de definir sua agonia.

Brad Pitt está tendo um grande ano. Após uma interpretação maravilhosa em Era Uma Vez em Hollywood (2019), aqui, o ator transforma-se em um ser que sempre está com a aparência de derrotado. O drama do personagem tem influência quase total do ator, porque este entrega uma performance formidável, conseguindo espelhar as indignações do personagem e sua profunda dor emocional. Explicando a expressão “quase”, a direção de Gray não pode ser ignorada de maneira alguma, porque é a que sustenta tecnicamente essa prisão psicológica.

A maneira de extrapolar os usos do primeiro plano e do primeiríssimo plano ressalta a importância de sentirmos seus dramas.  O filme vai e volta várias vezes com flashbacks que retomam a relação entre Roy e sua mulher (Liv Tyler), além daqueles que juntam ele e o seu pai na infância. Me lembrou na hora das cenas de A Chegada (2016), que também se utiliza de flashbacks para sensibilizar a vida da personagem e aproximá-la para com o público. E a montagem não para por aí, porque intercala nos momentos corretos diversas cenas desconexas, mas que criam a cadeia psicológica que Roy está. Ele precisa escapar.

Focando em uma abordagem mais técnica, Ad Astra pode cometer alguns erros científicos, mas cinematograficamente tem uma condução brilhante pela constituição das cenas. A fotografia de Hoyte van Hoyteman destaca a saturação de cores específicas, aplica certas luzes e sombras em cenas mais amplas e gerais e, embora o diretor abuse das sombras nos rostos dos personagens, cria uma passagem interessante e significativa no terceiro ato. Há, também, movimentações e ângulos de câmera que se conversam durante o filme, – e você deve ficar atento – mas seria spoiler se descrevesse-os aqui.

Outro ponto fortíssimo é a concepção de cenários, que remete um pouco ao 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968) e ao Solaris (1971). Há uma brincadeira de cores em determinada parte que se assemelha ao recente Blade Runner 2049 (2017). Existe a adição de surpreendentes cenas de ação, que, além de serem bem gravadas e conterem uma brutalidade marcante, dão um contraste com a trama rígida e reflexiva.

Chegando no terço final do longa, o filme estava me parecendo um pouco desgastante e, mesmo estando fascinado, senti que o final estava prestes a não entregar nada. Erro rude, porque é aqui que nós partimos da jornada íntima de Roy para um dos temas centrais de Ad Astra. A relação entre Roy e Clifford serve como instrumento para nos levantar questões acerca da busca pelo conhecimento. Afinal, o que buscamos de verdade? De onde surgiu a necessidade instantânea de conhecermos o universo, e de expandirmos horizontes? Seria algo bom realmente? Mais dúvidas e dores? Mais respostas duras para enfrentarmos?

A viagem para o desconhecido, o descobrimento da extensão do universo, a imposição da racionalidade humana diante dos segredos das galáxias, não parecem ser um caminho fácil. E Ad Astra demonstra, com a jornada de Roy e a sua relação paterna, que talvez já tenhamos as respostas, mas não conseguimos enxergá-las, ou, na verdade, nunca quisemos entendê-las.

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Yesterday: Um mundo sem os Beatles

Em certa passagem do filme, quando o mundo já desconhece os Beatles, o protagonista Rick Maleki (Himesh Patel) canta um trecho de Yersterday – justificando o título – para um grupo de amigos. Imediatamente, as pessoas se emocionam e ficam tocadas ao ouvir uma letra tão bela e poética, atribuindo a concepção da música diretamente ao protagonista. E talvez esta seja a passagem que sintetize o significado de todo o filme; embora os Beatles sejam uma das maiores bandas da história, suas músicas são memoráveis não só por serem tocadas pelos seus artistas, mas por transcenderem a própria existência destes.

Basicamente, a trama gira em torno da não-existência dos Beatles. Quando Maleki percebe o fracasso que é a sua vida profissional na música, decide reconstituir todas as músicas da banda britânica, e montar uma carreira inteira em cima do sucesso daqueles que desapareceram da memória coletiva. O melhor de Yesterday é conseguir brincar e desenvolver sua premissa de maneira criativa e empolgante. A forma como as músicas vão sendo lembradas pelo protagonista, ou quando elas são apresentadas em shows que remetem vários momentos únicos da banda, são exemplos que demonstram as inúmeras possibilidades dos roteiristas para com o desenrolar da narrativa.

E são nessas possibilidades que se encontra um grande trunfo de Yesterday. Mesmo que o filme trabalhe bastante o romance entre Maleki e Ellie (Lily James), ele carrega consigo diversas homenagens ao grupo formado por McCartney, Starr, Harrison e Lennon. Diferencia-se, portanto, de obras como Rocketman (2019) e Bohemia Rhapsody (2018), porque parte de um diferente ponto de vista, reproduzindo as carreiras lendárias através da lembrança de um fã apaixonado.

Porém, a idealização de músicas da década de 60/70 contrastam com a produção musical contemporânea, e esta dualidade é outro ponto fortíssimo de Yersterday. A participação de Ed Sheeran é totalmente proposital, não só por sua popularidade – importante para os produtores -, mas também pela representação de uma época em que a música transformou-se em um produto puramente comercial. E, obviamente, quando Maleki apresenta certas músicas, apesar de ser ovacionado, tem um confronto entre as necessidades do mercado e o seu processo “criativo”.

Dessa forma, Yesterday faz críticas contundentes à indústria musical e à transformação do interesse artístico pelo simples fator monetário. As críticas partem da própria ridicularização de Ed Sheeran – que interpreta a si mesmo – pois trata as composições dele como superficiais e pouco criativas comparadas com as antigas. Esse ato provocador não parece ter a pretensão de julgar o presente, mas de demonstrar como as escolhas e os gostos musicais transformam-se durante a história, sendo moldados pela fama e publicidade. Não que não houvesse isso na época dos Beatles, contudo, o interesse econômico tem degradado a qualidade artística de certos músicos.

Um fortíssimo exemplo dessas oposições é quando – está nos trailers – Sheeran tenta influenciar Maleki a trocar Hey Jude para Hey Dude, demonstrando como as composições ficam em prol de um refrão ou expressão que fiquem marcados de forma instantânea nas pessoas. O impacto no coração deve ser menor do que no bolso.

Diante de tantas qualidades conceituais, Yesterday transmite simplicidade em sua cinematografia, mas esbanja inteligência. Há uma montagem e edição eficazes por aplicar as músicas em passagens de tempo e locais, além de ditar tons de certos momentos. Note como as lembranças de certas músicas são feitas através de movimentos de câmera que se encaixam no vai e volta da cabeça do protagonista, que acaba errando alguma frase ou letra. Além disso, o ápice do longa ocorre em seu terço final, em uma sequência sensacional e surpreendente, que guarda um sentimentalismo e até uma singela prática íntima do diretor Danny Boyle.

Após sete parágrafos elogiando e enaltecendo as melhores partes de Yersterday, gostaria de encerrar o texto com uma das frases mais clichês e precisas de uma crítica: “fecha com chave de ouro”. Contudo, o que acontece nos minutos finais beira ao medíocre. A relação entre Maleki e Ellie não é o maior foco, mas é o que dá substância à história dos personagens. E, depois de um terceiro ato que melhorava a cada minuto, o filme encerra de maneira clichê e completamente previsível tal romance. Se o seu desenvolvimento traduz um ótimo filme, seu desfecho traduz o final de uma novela das nove, porque extrapola o romantismo na relação do casal, e entrega conclusões pífias para as suas discussões.

Yesterday consiste em uma obra cinematográfica que busca enaltecer suas inspirações, e refletir certo otimismo ao espectador. Ainda que estrague um pouco seu final, o filme cumpre suas funções em homenagear os Beatles e desmembrar a indústria musical, que, mesmo com suas ambições financeiras, não consegue substituir o valor artístico das composições que têm como função inspirar e transcender ao longo da história.
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Philip K. Dick e o seu Castelo Alto

O Homem do Castelo Alto é uma história muito singular dentro da literatura que aborda ficção cientifica e – por que não? – política. Dentro de várias obras de Philip K. Dick, O Homem do Castelo Alto se destaca por apresentar uma diversidade em seu discurso e foco temático. Enquanto o autor tenta discutir e criar parâmetros de comparações entre a nossa realidade e a do próprio livro, ele consegue levantar discursos relacionados à arte e política.

A genialidade de Phillip toma notoriedade quando a trama correlaciona todos os questionamentos levantados e os traduz de uma forma simples e eficaz. A história da sua vida é fascinante em alguns pontos. O autor se envolveu com vários tipos de experiências ao longo da carreira, e sempre esteve engajado em analisar a própria realidade e, principalmente, questioná-la. Embora o faça neste livro, suas críticas estão bem difundidas na história, e requer o esforço do leitor de interpretá-las de forma livre e pessoal.

O livro nos mostra um mundo completamente diferente do que nós vivemos hoje. Os EUA, a Rússia e a França perderam a Segunda Guerra Mundial. A Alemanha é a grande potência mundial, liderada e comanda pela organização nazista de Adolf Hitler e seus apoiadores. Se hoje temos um EUA consolidado em estados federativos, no livro temos um país com uma grande fragmentação política e cultural, com divisões territoriais envolvendo os domínios de Japão e Alemanha.

Com essa organização, o autor parece brincar com as inúmeras possibilidades de sua criatividade. Não só por colocar os japoneses como seres de grande ascensão econômica no território americano, sendo eles empresários, gerentes ou até mesmo políticos, mas também por encaixar uma tensão entre os povos vitoriosos. Ao contrário do que se imagina, já que os japoneses e alemães venceram a guerra, a relação entre os povos não é harmoniosa, e sim conflitante, por envolver visões puramente nacionalistas e orgulhosas – te lembra de algo?

 

Abordando diferenças territoriais e sociais, a análise passa por campos artísticos e culturais. Robert Childan, um dos primeiros personagens a nos ser introduzido, é dono de uma loja de artigos da história americana antes da guerra. Os maiores frequentadores e compradores são japoneses da elite, que são fascinados pela arte americana. Assim sendo, mesmo tendo derrotado os ideais do american way of life, os japoneses se sentem bem ao adquirirem artes americanas. No mundo imaginativo, a posse de antiguidades denota inteligência e prestígio social. Desse modo, mesmo desprezando o viés ideológico, a cultura americana serve como artifício intelectual para a sociedade japonesa e alemã.

Além desse aspecto de valor associado à arte, existe um julgamento moral aos japoneses da história. Mesmo adquirindo e consumindo antiguidades, estes não parecem entender o valor dos itens. Há um distanciamento entre a reflexão e a valorização social. Só para deixar como exemplo, há uma passagem em que o personagem Nobusuke Tagomi, representante do comércio japonês, recebe uma peça que não parece transmitir nenhum valor estético, e começa a tentar senti-la de várias formas sensoriais, já que os valores atrelados ao objeto são desconhecidos pelo personagem.

A utilização de judeus virou inerente a qualquer história que envolva nazismo e Segunda Guerra, já que o povo judeu foi o mais perseguido e massacrado durante o período nazista. Imagine no cenário em que a raça ariana estabelece sua expansão ao redor do globo. Obviamente, aqui os personagens judeus – Frank Frink e Juliana Frink, prioritariamente – tentam sobreviver criando novas identidades, se escondendo por meio de perfis falsos e mudanças físicas. Talvez os melhores momentos do livro sejam aqueles que abordam justamente os ideais inflamados dos judeus, que se sentem presos e enjaulados em um sistema totalitário nazista.

O I Chiang, o oráculo chinês, é parte importantíssima para o desenvolvimento da trama. É por causa dele que os personagens tomarão diversas decisões, ele será um dos condutores principais da trama. Toda esta realidade depende exclusivamente do que o oráculo mostra, sendo seguido firmemente por toda a sociedade. Esta crença é que, de certa forma, conecta os personagens uns aos outros.

Além do I Chiang, há um outro objeto que interliga as histórias dos personagens, mesmo que apenas no campo das ideias. O Gafanhoto Torna-se Pesado é um dos livros de ficção abordados no próprio “O Homem do Castelo Alto”, que relata uma outra realidade em que a Tríplice Entente tenha ganhado a guerra, ou seja, a NOSSA realidade. Ao aprofundar a perplexidade dos personagens com o livro, Philip impões duas versões de mundo em uma mesma linha de raciocínio, colocando o próprio leitor em dúvida sobre a veracidade de tudo aquilo.

O homem do Castelo Alto é o autor do O Gafanhoto e se demonstra ser uma pessoa misteriosa, mas com a capacidade incrível de análise e observação. Claro que este personagem se assemelha propositalmente ao próprio Philip K. Dick. O autor gosta de flertar com a sua genialidade em problematizar as bases políticas que hoje nos estabelecem; discute-se, portanto, o quão estamos iludidos em um sistema tão amplo e complexo. Esta ficção se torna uma brincadeira entre o real e o ficcional, e no final, não obtemos nenhuma resposta, resultando em uma conclusão frustrante, porém perspicaz.

Mas qual seria a melhor resposta, senão a dúvida?

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Humanos, Androides e Philip K. Dick

ATENÇÃO: Este post contém spoilers do livro Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas?

O que nós somos?  Como se define o ser humano? Ao longo de nossas vidas, ouvimos e iremos ouvir este tipo de pergunta com certa frequência. A curiosidade sobre nossas origens, funções e destino é inerente a nós. Há uma necessidade natural de buscarmos respostas sobre o porquê de nossas vidas. Ora, se estamos pensando, digitando e respirando neste momento, deve haver uma motivação para isso tudo. Nossas vidas precisam fazer sentido, pelo menos para nós próprios. Ou será que não? Será que apenas vivemos em um pedaço de tempo até o completo esquecimento, sem nenhum impacto no mundo? Os momentos da vida, sejam de alegria ou tristeza, se perderão como lágrimas na chuva?

Perguntas são o princípio da discussão e de diversas descobertas. A dúvida deve ser o único elemento possível que nos coloca em confronto diante do universo. Se não fossemos nós que duvidássemos da nossa própria capacidade de ir ao espaço, ou da curiosidade em relação a vidas fora do planeta, provavelmente nunca estaríamos progredindo em questões científicas e espaciais. Então, se a dúvida provoca a pergunta, é através dela que podemos dar passos para trás e analisarmos em uma perspectiva maior e complexa. Philip K. Dick introduz uma pergunta no título de sua obra: Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas?, nos convidando, logo de cara, a uma discussão profunda sobre humanidade, da ascensão até sua previsível queda.

Rick Deckard representa o pior do homem. Sua descrição física condiz com a de um homem derrotado pela vida. Tendo um único e simplório objetivo de comprar um animal que não seja elétrico – algo difícil e caro na história -, com pouco a acrescentar ao mundo, desestimulado dentro do trabalho e da própria vida pessoal. O caçador de androides é retratado do começo ao fim como um ser humano desprezível e problemático. O que incomoda dentro dessa caracterização, é a semelhança assustadora entre nós e ele. Mesmo que o personagem esteja inserido em um cenário mais pessimista e caótico do que o nosso – ou não – é fácil encontrarmos similaridades entre a realidade e a ficção. Identificar pessoas sem propósito e desejo em 2019 não parece ser tão difícil. Ao passo em que a tecnologia avança, a sociabilidade e o senso de comunidade desaparecem, degradando a saúde mental e psicológica daqueles que se isolam socialmente.

Dito isso, Deckard não é só o pior do homem, mas a síntese de todas as ideias de Philip K. Dick. Enquanto o autor caracteriza-o minuciosamente, expõe críticas ao jeito único do caçador. Sua vontade de matar androides aliada com a autorização oficial para fazê-la, o coloca em uma posição máxima de autoridade na Terra radioativa, em que aqueles personagens tentam sobreviver. Mesmo que sua função seja uma das mais importantes: eliminar androides proibidos dentro do planeta, a profissão é menosprezada pela sociedade.

Sendo assim, a jornada começa com essa premissa. Rick Deckard é um homem com pouquíssimas convicções e vontades, exercendo uma das mais relevantes profissões da época. Deste ponto em diante, ocorre um longo processo de desenvolvimento de personagem, onde vemos o simples homem sem virtudes, encontrar respostas significativas acerca da segregação entre humanos e replicantes.

O livro Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas? serve como uma fundamentação teórica para as duas adaptações cinematográficas, Blade Runner, o Caçador de Androides (1982) e Blade Runner 2049 (2019). O contexto ainda é o mesmo, o mundo está em um caos após uma guerra de proporções mundiais irradiar vários países. Aqueles que gozavam de dinheiro e um estilo de vida financeiro agradável e vasto, foram para as colônias espaciais, deixando para trás o lixo e a sujeira.

Pobres, problemáticos, deficientes, entre outros, ficaram aqui, se afogando dentro do mar de merda que o mundo se tornou. O que mais impressiona nas descrições de Philip K. Dick, que ganham sustentação com as composições estéticas/fotográficas criadas por Jordan Cronenweth, é o quão se aproxima esta distopia dos dias de hoje. Prédios empresariais e domicílios se confundem na paisagem. As pessoas perderam sua identidade e se aglomeraram em vários pontos das principais cidades onde se encontra uma “melhor” condição de vida, mais distante da radioatividade. Elas ficam escondidas e passam despercebidas, sofrem uma pressão implícita de néons e outdoors publicitários em todo canto. Os avanços tecnológicos são detalhes perto do ambiente claustrofóbico das cidades “futurísticas”. E, para ficar ainda mais caótico, androides fugitivos das colônias interagem entre humanos, a vida “artificial”, portanto, se confunde com a real.

Enquanto presenciamos uma descrição minuciosa e criativa de Philip, há outras diversas camadas dentro do ambiente do livro que são extremamente importantes para a construção ética de toda a narrativa. Antes disso, é bom deixar claro como funciona o trabalho do autor. Sua obsessão com estas imaginações obscuras não é por acaso. A verdade é que sua obsessão sempre foi com a própria realidade. Mas qual seria a melhor forma de abordar as problemáticas reais, senão a construção de um cenário inteiramente “imaginativo” e metafórico, para colocar o real em desconstrução. Por conta disso, as intenções do autor são claras, mas não tão óbvias quanto parecem. A necessidade de se importar com as coisas ao nosso redor sempre esteve presente. E Philip K. Dick sabia isso.

Destacando algumas das várias camadas do livro, há duas que talvez sejam as mais relevantes: religião e sistemas manipuladores. O começo do livro nos mostra Deckard e Iran (sua esposa, ideia descartada dentro dos filmes) discutindo sobre em qual número eles iriam deixar seu sintetizador de ânimo. A conversa acontece naturalmente, e percebemos que estes personagens estão, de certa forma, condenados a manipulação. Suas mentes são completamente vulneráveis às influências de um sistema que não fica explícito dentro do livro. Outro exemplo é o Buster Gente Fina, que se assemelha a um Silvio Santos misturado com um Serginho Malandro. Buster Gente Fina é o único programa que passa na televisão o dia inteiro. Portanto, toda a sociedade vive em um casulo, onde as produções culturais e emocionais são previamente determinadas, limitando os sentidos daqueles que as consomem.

Outra marca autoral de Philip K. Dick é o simbolismo religioso. De alguma forma, às vezes menos, outras vezes mais, alguns elementos que remetem a religiosidade estarão difundidos na história principal. Discutir uma das estruturas sociais mais influentes das nossas vidas é constante nos trabalhos do autor. E, talvez, Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas? seja a obra mais pontual dele sobre o tema. Se estamos refletindo sobre a nossa própria existência, como não perceber o que a religião traz de sentido, seja ele positivo ou negativo. Todas essas ideias ficam centradas na figura de Mercer e o mercerismo. John Isidore, outro ignorado pela trama cinematográfica, é um dos personagens do livro mais conectados ao mercerismo. Não há uma explicação de fato sobre o que é Mercer. Alguns o entendem como um Deus, uma entidade mágica, mas todos os humanos já passaram pela experiência de se conectarem com ele pelo menos uma vez. Tal conexão também é bem confusa e pouco explicada dentro da obra, mas dá a entender que ocorre uma grande epifania psíquica e moral no encontro com Mercer e suas pedras.

Porém, o que mais importa dentro da história, pelo menos para o autor deste post, são os replicantes.

Se humanos já sofrem o suficiente, imagina aos seres em que a vida é, simplesmente e friamente, negada. Os androides, sem licença empresarial/política, estão proibidos na Terra, e os blade runners são os responsáveis para os aposentarem. Roy Baty, Irmgard Baty, Pris Stratton, Rachael Rosen, Luba Luft, Polokov e Garland, entre outros, representam os androides e a lista de recompensas de Rick Deckard. Todos estes personagens tem seus momentos gloriosos dentro da trama, as passagens que os envolvem colocam em julgamento a divisão existente entre o real e o artificial. Suas concepções pessoais sobre o que eles são e o que a vida significa nos coloca na posição de os acharmos mais humanos do que os próprios. Há um diálogo entre Luba Luft e Deckard, em que a replicante afirma: “A imitação é a melhor forma de vida.” Ou quando descobrimos que a real ocupação de Roy Baty nas colônias era de farmacêutico, e ele dava remédios alucinógenos para si e outros replicantes, que são impossibilitados de se conectarem com Mercer. Qual é justificativa para esse ato? Ele queria se aproximar de Deus.

É aqui que chegamos em um dos melhores momentos do livro. Significado e Deus se relacionam quando percebemos que é o que muitos de nós acreditamos. O amor que a humanidade sente por algum Deus, dependendo da religião, é só uma troca pela verdadeira necessidade humana: buscar seu significado. O replicante, portanto, é ser humano, porque a busca por Deus é a tentativa máxima de procurar justificativas para a existência. Sem crenças, ou sem descrenças, o que nós seríamos? E se os replicantes também buscam por respostas, por que nossas dúvidas valeriam mais que as deles?

Quando nos deparamos com tais perguntas, Philip K. Dick não se contenta só com isso, e destrói tudo o que as pessoas acreditavam. Mercer, na verdade, era um ator contratado para participar de uma produção cinematográfica, esta, que é a experiência conectiva do mercerismo. E, chegamos no desfecho mais arrebatador: a única prova que os humanos tinham de empatia se tornou lágrimas na chuva, parafraseando o final do filme – que não se assemelha em nada com o do livro. Mesmo que esta descoberta fique limitada só para os personagens principais.

Isidore, um “cabeça de galinha”, – termo criado para se designar aqueles que foram afetados pela radiação da Poeira, num sentido mental – que acreditava firmemente no mercerismo, vê sua crença se desmantelar. Sentia-se deslocado dentro da sociedade pelos seus problemas mentais, agora, parece ter sentido seu afastamento total. Quando ocorre o fato, entretanto, Isidore tenta compreender o que aconteceu, e discute com Mercer sobre o plano de fundo do local de conexão, que se assemelhava a uma paisagem natural, mas que era uma pintura. Mercer revela, enfim, que Isidore nunca percebeu porque sempre estava muito a frente, e nunca olhou por um ângulo mais distante.

O que prova, definitivamente, que os replicantes tinham um olhar mais apurado e profundo do que os seres humanos. Mercer é uma fraude, e a prova de empatia que dava significado a tantas insignificantes vidas foi desmantelada por androides marginalizados. O teste Voigt-Kampff, que diferencia humanos e replicantes através de respostas empáticas, parece não fazer mais sentido. Assemelha-se com a vida de Rick Deckard, que conseguiu, no fim, aposentar todos os androides restantes, mesmo que sua concepção de vida tenha se alterado. Enquanto Phil Resch, um dos outros caçadores, afirma que os blade runners são a divisão moral entre o real e o artificial, Deckard se depara com a conexão entre os dois contextos. Este homem, o pior dos homens, entende o real significado de empatia. Sua dúvida se Luba Luft era uma replicante, o relacionamento sexual com Rachael e, sua posterior demissão, resultam na sua evolução ética e igualitária.

Philip K. Dick constrói um futuro distópico que busca nos fazer refletir sobre o real cenário das coisas. Usando Rick Deckard como a representação perfeita e única da humanidade, Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas? é uma obra excepcional e genialmente trabalhada por um dos maiores autores da ficção científica. Em uma jornada simples de um caçador atrás de suas meras recompensas, nos deparamos com novas perspectivas sobre o como vivemos e o que fazemos enquanto estamos aqui. Não há uma definição exata do porquê, e quando se acaba a leitura, muito provavelmente não ocorrerá uma epifania sobre o sentido da vida. A obra não é sobre buscar respostas, mas de se contentar na ausência delas.

E pensar que tudo isso foi por causa de uma ovelha elétrica…

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Cinema

The Dead Don’t Die apresenta Bill Murray e Adam Driver contra zumbis

A nova obra intitulada The Dead Don’t Die ganhou seus primeiros materiais promocionais. Foi oficialmente exibido o primeiro trailer, mostrando o recheado elenco do filme e, obviamente, muitos zumbis.

Além do trailer, houve a revelação do primeiro pôster, exibindo diversos nomes conhecidos.

The Dead Don’t Die não tem previsão para estrear nos cinemas brasileiros. Com Jim Jarmusch responsável pelo roteiro e direção, o projeto está previsto para ser lançado dia 14 de junho nos Estados Unidos.

O elenco conta com Bill Murray, Adam Driver, Tilda Swinton, Selena Gomez, Danny Glover, Chloe Sevigny, entre outros.

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Tela Quente

Chorar de Rir: Só deu para chorar…

Partindo de uma opinião muito particular, acredito que a comédia seja um dos gêneros mais difíceis de se fazer atualmente no cinema. Apesar de termos uma quantidade enorme de filmes neste estilo, não é difícil encontrarmos vários que não nos arrancam nenhuma risada. Textos que abrangem o humorismo tendem a ser complexos por trabalharem com diversas possibilidades – a história pode seguir um rumo mais físico, referencial, ou até mesmo escatológico, dependendo da sua proposta. Outro fator é a contínua adaptação em relação ao público, há certas piadas e momentos que não funcionam como antes. Entender o seu público, o tom e ritmo da história, além do timing entre as cenas e os próprios personagens resultam na dificuldade de trabalhar com o gênero.

Sabendo deste desafio, diversas obras caem na generalidade em pouco tempo de tela. A falta de criatividade, a não habituação aos novos tempos, etc, são exemplos do que pode ocorrer em filmes genéricos. E, obviamente, Chorar de Rir cai direto nesta zona. Não só por entregar uma comédia sem a menor graça, como também apostar tanto no passado e ignorar o presente promissor.

Leandro Hassum (Nico Perequê) é um comediante famoso que ganhou diversos prêmios pela carreira. Além de ter um programa bastante conhecido – este, que é o Chorar de Rir – Nico mantém uma estabilidade financeira e social. Porém, ele se depara com o distanciamento existente entre o cômico e o dramático no âmbito profissional. Seu trabalho artístico é menosprezado enquanto atores dramáticos são exaltados, e suas obras, valorizadas. O desenrolar da trama conta com Nico tentando mostrar sua capacidade artística para o drama, mesmo que isso custe toda sua fama e dinheiro.

A premissa parte de um argumento válido e coerente. Talvez a única coisa que se salve é a reflexão feita nos minutos iniciais, mesmo que esta desapareça ao longo da trama. O mundo artístico está recheado de preconceitos de diversos tipos, e há uma clara supervalorização do drama, enquanto a comédia vira sinônimo de passatempo e diversão. Tal olhar para com os filmes cômicos prejudica o cinema de modo geral. Desvalorizar a qualidade e capacidade artística de um determinado gênero é virar as costas para inúmeras possibilidades críticas, analíticas e sentimentais. Não é só fazer rir, mas também pensar, refletir, criticar, se inspirar, sonhar, entre tantas outras.

O parágrafo anterior foi uma tentativa falha de tentar aumentar o significado do fraco Chorar de Rir. Apesar de abordar alguns questionamentos, a discussão depende absolutamente do espectador. O filme, em nenhum momento sequer, levanta o assunto com autoridade e parcialidade, tornando-se covarde ao dizer quase nada e, além disso, criar uma incoerência assustadora no final. Deixando de lado qualquer substância dentro do roteiro, ficamos com pouca coisa para falar sobre.

Leandro Hassum sempre foi um dos grandes humoristas do Brasil. Seu humor está entre o pastelão e o físico, sendo uma mistura muito bem-vinda entre os dois estilos. Porém, nada do filme se aproveita do seu talento, criando um personagem sem identidade e graça. A falta de criatividade fica nítida quando Chorar de Rir usa seu protagonista para gritar falas e piadas a todo momento, porque o ator parece não se afeiçoar com a trama, forçando excessivamente a comédia física – que está bem ultrapassada.

E o principal problema, causador de todos os outros, é justamente a implicância com um mesmo tipo de comédia, deixando tudo nas costas de Hassum. Enquanto temos outros personagens que tinham um potencial maior e, mesmo não sendo engraçados pelo limitado roteiro, conseguem arrancar alguma risada, o diretor Toniko Melo prefere estruturar toda sua narrativa ao redor do humor mais antigo e ultrapassado do momento. Não estou julgando a importância do elemento físico, mas o filme pecou em não explorar coisas mais atuais. “Habituação aos novos tempos”, como disse anteriormente.

Vivemos em um mundo diferente, conectado, repleto de vídeos, gifs, stickers, etc. Memes, stand-ups e montagens tomaram proporções gigantescas. As referências se tornaram mais comuns com tantas marcas, programas e sites existentes nos dias de hoje. O Porta dos Fundos, por exemplo, é um projeto que deu certo no YouTube por trazer o mix entre o humor negro, satírico e físico, rodeado pelas referências mais inusitadas: de nomes na Coca-Cola, até o próprio restaurante Spoleto.

Chorar de Rir conta com o fantástico Rafael Portugal, do próprio Porta. Falas mais ágeis e imprevisíveis são marcas da própria veia cômica provida pela internet, e Portugal deixa bem claro dentro da história, criando a única cena engraçada dentro de 1 hora e 43 minutos. Contudo, seu personagem é completamente esquecido e aparece por pouquíssimo tempo. Outro expoente da internet, Caito Mainier, comanda um programa de fofoca, Fama News, que funciona como uma sátira a todos os programas que abordam o dia a dia de famosos e celebridades. Achou que eles iriam aproveitá-lo? ACHOU ERRADO, OTÁRIO.

O que vemos é uma constante e excessiva necessidade de exaltar o passado, ignorando o potencial do presente, resultando em uma obra fraquíssima e nada engraçada. Ah, lembra-se daquela discussão abordada no começo? Então, ao invés de provar a existência do valor artístico da comédia, o roteiro vai para o lado contrário, deixando uma incoerência enorme entre a problemática proposta e sua conclusão. Finalizando com um discurso bonitinho, mas pouco inspirador, Chorar de Rir deixa um gosto amargo na boca. Deve-se respeitar o passado com toda a certeza, mas precisa saber a hora de colocar o presente em campo.

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Tela Quente

O retorno às origens de Martin Scorsese

Martin Scorsese é um dos melhores diretores vivos atualmente. Sua contribuição ao cinema é inegável e lendária, e basta conferir sua filmografia e constatar a quantidade de obras excepcionais que esta contém. Porém, tal sequência inacreditável de ótimos filmes não foi ao acaso ou pela sorte. Obras cinematográficas, de modo geral, são constituídas através dos olhares e interpretações de diretores e roteiristas. Nós, espectadores, veremos o que eles querem nos mostrar ou dizer; óbvio que a interpretação e o impacto dependem do público (outro fator fundamental), mas a construção estética e argumentativa está centrada nos pensamentos dos respectivos autores.

Dito isso, Scorsese sempre trabalhou em filmes as próprias percepções diante da realidade. Nascido em Nova York e tendo vivido grande parte da infância em Little Italy, tinha duas rotinas no seu dia a dia: ir ao cinema e à igreja. Obviamente que a primeira opção de profissão foi ser padre, mas as coisas, como sabemos, foram se desvirtuando aos poucos. Martin sempre foi amante e apaixonado pelo cinema, o documentário A Personal Journey with Martin Scorsese Through American Movies (1995) explora esta paixão. Depois de estudar na escola de cinema da Universidade de Nova York, seu trabalho passou a ser de dirigir alguns curtas enquanto ia descobrindo seu potencial.

Aos poucos começou a se arriscar e lançar longas-metragens. Who’s That Knocking at My Door (1968) e Boxcar Bretha (1972) foram os primeiros, até chegar em Mean Streets, de 1973. Apesar de Boxcar Bretha já ser um filme do gênero policial, Mean Streets é a consolidação máxima da visão de Martin sobre máfia, criminalidade e o subúrbio de Nova York – em Little Italy, bairro em que viveu. Sendo assim, é através deste exemplo que conseguimos notar a conexão existente entre as suas experiências e as implicações de seus filmes.

O gênero policial, o drama, a criminalidade, o sistema mafioso, a sujeira e o pessimismo exalados pelo subúrbio, estão intrínsecos na mente genial do diretor. Nota-se como a vida de Travis Bickle – interpretado maravilhosamente por Robert De Niro, já chegamos nele – e os cenários ao seu redor, são retratados em uma perspectiva pessimista e desacreditada em Taxi Driver (1976). Ou como o sistema fraudulento de cassinos é desmistificado e exemplificado em Cassino (1995). Até em Os Bons Companheiros (1990), quando acompanhamos a infância e o crescimento inteiro de Henry Hill (Ray Liotta) dentro da máfia. Estes são apenas alguns exemplos das diversas e variadas formas que ele consegue encaixar novas visões no mesmo foco temático.

Embora esteja constatada a qualidade para abordar esses elementos na linguagem cinematográfica, não há como deixar de lado algumas figuras que construíram suas carreiras ao lado dele; sendo elas: Robert De Niro, Joe Pesci e Harvey Keitel, prioritariamente, mas não esquecendo da ascendência de Jodie Foster, ou do crescimento de Leonardo DiCaprio.

De Niro e Scorsese poderiam se dizer irmãos, porque ninguém desconfiaria. Tantos filmes que estes dois trabalharam juntos, entregando coisas indescritíveis e inesquecíveis, que não iria se estranhar algum vínculo familiar. O jeito que se conduz atores/personagens é único. Dar liberdade ao ator para improvisar e, consequentemente, se conectar com o personagem, é um primeiro passo arriscado, mas corajoso, que sempre adotou nas gravações. Visto que há domínio na condução do elenco, fica nítido o porquê de tantos artistas se destacarem após trabalharem com ele. Robert DeNiro foi seu braço direito por muito tempo, até se consolidar como o grande ator que conhecemos.

Joe Pesci e Harvei Keitel são outras pérolas providas da filmografia de Scorsese. O primeiro filme de Keitel foi o próprio Who’s Knocking At My Door, e continuou atuando em outras histórias que abordavam crimes e máfias. Se destacou por iniciar a carreira junto a do diretor e depois, apesar de não trabalharem mais juntos, amadurecer em papéis importantes como em Thelma & Louise (1991), Cães de Aluguel (1992), Pulp Fiction (1994), entre outros. Joe Pesci, contudo, teve seus principais personagens nos próprios filmes do senhor Scorsese: Cassino, Os Bons Companheiros e Touro Indomável. Sua atuação se separava em duas habilidades: entonação dos diálogos e repetição de fuck’s por segundo. É inigualável como Pesci entende o comportamento, o modo de dizer e entoar, além dos trejeitos do arquétipo de mafiosos.

Entretanto, Martin não se afirmou através de um só gênero. Os filmes foram se diversificando ao decorrer do tempo, temos A Última Tentação de Cristo (1988) – retrato bastante pessoal sobre a história bíblica – até O Lobo de Wall Street (2013), que abordou de forma complexa e frenética a vida corruptiva do mundo dos negócios. O único elemento que sempre esteve inerente em todas as histórias é a abordagem íntima com os personagens e as narrativas. Todos os roteiros, na mão dele, são traduzidos de maneira didática e contextualizada. Estamos aprendendo a cada assistida, e impressiona a quantidade de conhecimentos difundidos. Seja sobre máfia, religião, business ou o próprio cinema (A Invenção de Hugo Cabret (2011) prova isso), possui todos os assuntos na palma da mão.

Colocando o presente em análise, o século XXI nos registrou como um diretor, de décadas passadas, possa fazer cinema nos dias de hoje modernizando técnicas e linguagens, porém, nunca perdendo a identidade. Os próprios O Lobo de Wall Street e Ilha do Medo (2010) exemplificam a energia e o fôlego inovadores na estruturação dos ambientes e personagens. E tal modernização fica notória em Os Infiltrados (2006), que se tornaria o último filme de máfia por um longo período.

Remake de Mou Gaan Dou (Conflitos Internos, 2002), obra chinesa, Os Infiltrados funciona como uma homenagem a toda a carreira construída até aqui. Uma linguagem moderna e atual, auxiliada pelas experiências acumuladas em mais de trinta anos resultaram em um dos melhores filmes do gênero do século. O conflito entre os personagens, a dualidade moral entre polícia e máfia, além da violência física e psicológica, demonstram o domínio de todas as etapas cinematográficas. E, finalmente, depois de tantas injustiças, Martin Scorsese ganha o seu merecidíssimo Oscar, em 2007, de Melhor Diretor. Os Infiltrados também ganhou de Melhor Filme, Melhor Roteiro Adaptado e Melhor Edição.

Agora, em 2019, fará quase 13 anos sem um filme como Os Infiltrados no cinema. Tanto tempo sem o gênero policial maduro, que sempre nos presentou, faz muito mal ao cinema nos dias de hoje. Mas parece que a espera irá acabar. Foi anunciado, pela Netflix, The Irishman, adaptação do livro I Heard You Paint Houses. Previsto para estrear no final desse ano, a obra, além de muito promissora, parece ser o retorno às origens de tudo o que nós vimos durante décadas. Não é uma homenagem ou a celebração de toda uma história, é o acúmulo inacreditável, e nunca visto, de experiências dentro do cinema americano.

O retorno do seu braço direito, Robert De Niro, a volta da aposentadoria do fucking Joe Pesci e, juntando com o cara que iniciou tudo, Harvey Keitel, The Irishman é o Vingadores: Ultimato da vida de Martin Scorsese. É o cúmulo de toda a filmografia baseada na vida e história do próprio. E, mesmo assim, após diversas películas com o mesmo foco temático, podemos ter certeza que teremos novas visões e perspectivas, porque há uma extrema agilidade e versatilidade em explorar as potencialidades do sistema mafioso e dos dramas pessoais existentes nos personagens.

Tem como ficar melhor? Sim, por incrível que pareça. Outra adição incrível no elenco é o famoso, o talentoso e o mestre, Al Pacino. Um dos maiores e melhores atores da história, além de estrelar a trilogia do O Poderoso Chefão (1972), – ápice na vida de qualquer ator – Pacino tem o mesmo sangue nas veias. Sua contribuição para o gênero policial, e as interpretações de diversos mafiosos e criminosos, foram o ponto máximo da profissão. Scarface (1983) e O Pagamento Final (1993) são grandes exemplos disso.

Bem, se temos este elenco admirável e extremamente capaz, podemos esperar outro grande filme. Além disso, temos um dos – e repito mesmo – maiores diretores do século XX e XXI, Martin Scorsese, coordenando o projeto. Portanto, talvez estejamos próximos de mais uma obra-prima do diretor, que traduziu sua vivência e suas experiências em obras humanas, pautadas na realidade nua e crua, provando a marca autoral existente no Cinema.

Ah… e se for ruim? Como diria Joe Pesci: Foda-se, o cara tem crédito.