ATENÇÃO: Este post contém spoilers do livro Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas?
O que nós somos? Como se define o ser humano? Ao longo de nossas vidas, ouvimos e iremos ouvir este tipo de pergunta com certa frequência. A curiosidade sobre nossas origens, funções e destino é inerente a nós. Há uma necessidade natural de buscarmos respostas sobre o porquê de nossas vidas. Ora, se estamos pensando, digitando e respirando neste momento, deve haver uma motivação para isso tudo. Nossas vidas precisam fazer sentido, pelo menos para nós próprios. Ou será que não? Será que apenas vivemos em um pedaço de tempo até o completo esquecimento, sem nenhum impacto no mundo? Os momentos da vida, sejam de alegria ou tristeza, se perderão como lágrimas na chuva?
Perguntas são o princípio da discussão e de diversas descobertas. A dúvida deve ser o único elemento possível que nos coloca em confronto diante do universo. Se não fossemos nós que duvidássemos da nossa própria capacidade de ir ao espaço, ou da curiosidade em relação a vidas fora do planeta, provavelmente nunca estaríamos progredindo em questões científicas e espaciais. Então, se a dúvida provoca a pergunta, é através dela que podemos dar passos para trás e analisarmos em uma perspectiva maior e complexa. Philip K. Dick introduz uma pergunta no título de sua obra: Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas?, nos convidando, logo de cara, a uma discussão profunda sobre humanidade, da ascensão até sua previsível queda.
Rick Deckard representa o pior do homem. Sua descrição física condiz com a de um homem derrotado pela vida. Tendo um único e simplório objetivo de comprar um animal que não seja elétrico – algo difícil e caro na história -, com pouco a acrescentar ao mundo, desestimulado dentro do trabalho e da própria vida pessoal. O caçador de androides é retratado do começo ao fim como um ser humano desprezível e problemático. O que incomoda dentro dessa caracterização, é a semelhança assustadora entre nós e ele. Mesmo que o personagem esteja inserido em um cenário mais pessimista e caótico do que o nosso – ou não – é fácil encontrarmos similaridades entre a realidade e a ficção. Identificar pessoas sem propósito e desejo em 2019 não parece ser tão difícil. Ao passo em que a tecnologia avança, a sociabilidade e o senso de comunidade desaparecem, degradando a saúde mental e psicológica daqueles que se isolam socialmente.
Dito isso, Deckard não é só o pior do homem, mas a síntese de todas as ideias de Philip K. Dick. Enquanto o autor caracteriza-o minuciosamente, expõe críticas ao jeito único do caçador. Sua vontade de matar androides aliada com a autorização oficial para fazê-la, o coloca em uma posição máxima de autoridade na Terra radioativa, em que aqueles personagens tentam sobreviver. Mesmo que sua função seja uma das mais importantes: eliminar androides proibidos dentro do planeta, a profissão é menosprezada pela sociedade.
Sendo assim, a jornada começa com essa premissa. Rick Deckard é um homem com pouquíssimas convicções e vontades, exercendo uma das mais relevantes profissões da época. Deste ponto em diante, ocorre um longo processo de desenvolvimento de personagem, onde vemos o simples homem sem virtudes, encontrar respostas significativas acerca da segregação entre humanos e replicantes.
O livro Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas? serve como uma fundamentação teórica para as duas adaptações cinematográficas, Blade Runner, o Caçador de Androides (1982) e Blade Runner 2049 (2019). O contexto ainda é o mesmo, o mundo está em um caos após uma guerra de proporções mundiais irradiar vários países. Aqueles que gozavam de dinheiro e um estilo de vida financeiro agradável e vasto, foram para as colônias espaciais, deixando para trás o lixo e a sujeira.
Pobres, problemáticos, deficientes, entre outros, ficaram aqui, se afogando dentro do mar de merda que o mundo se tornou. O que mais impressiona nas descrições de Philip K. Dick, que ganham sustentação com as composições estéticas/fotográficas criadas por Jordan Cronenweth, é o quão se aproxima esta distopia dos dias de hoje. Prédios empresariais e domicílios se confundem na paisagem. As pessoas perderam sua identidade e se aglomeraram em vários pontos das principais cidades onde se encontra uma “melhor” condição de vida, mais distante da radioatividade. Elas ficam escondidas e passam despercebidas, sofrem uma pressão implícita de néons e outdoors publicitários em todo canto. Os avanços tecnológicos são detalhes perto do ambiente claustrofóbico das cidades “futurísticas”. E, para ficar ainda mais caótico, androides fugitivos das colônias interagem entre humanos, a vida “artificial”, portanto, se confunde com a real.
Enquanto presenciamos uma descrição minuciosa e criativa de Philip, há outras diversas camadas dentro do ambiente do livro que são extremamente importantes para a construção ética de toda a narrativa. Antes disso, é bom deixar claro como funciona o trabalho do autor. Sua obsessão com estas imaginações obscuras não é por acaso. A verdade é que sua obsessão sempre foi com a própria realidade. Mas qual seria a melhor forma de abordar as problemáticas reais, senão a construção de um cenário inteiramente “imaginativo” e metafórico, para colocar o real em desconstrução. Por conta disso, as intenções do autor são claras, mas não tão óbvias quanto parecem. A necessidade de se importar com as coisas ao nosso redor sempre esteve presente. E Philip K. Dick sabia isso.
Destacando algumas das várias camadas do livro, há duas que talvez sejam as mais relevantes: religião e sistemas manipuladores. O começo do livro nos mostra Deckard e Iran (sua esposa, ideia descartada dentro dos filmes) discutindo sobre em qual número eles iriam deixar seu sintetizador de ânimo. A conversa acontece naturalmente, e percebemos que estes personagens estão, de certa forma, condenados a manipulação. Suas mentes são completamente vulneráveis às influências de um sistema que não fica explícito dentro do livro. Outro exemplo é o Buster Gente Fina, que se assemelha a um Silvio Santos misturado com um Serginho Malandro. Buster Gente Fina é o único programa que passa na televisão o dia inteiro. Portanto, toda a sociedade vive em um casulo, onde as produções culturais e emocionais são previamente determinadas, limitando os sentidos daqueles que as consomem.
Outra marca autoral de Philip K. Dick é o simbolismo religioso. De alguma forma, às vezes menos, outras vezes mais, alguns elementos que remetem a religiosidade estarão difundidos na história principal. Discutir uma das estruturas sociais mais influentes das nossas vidas é constante nos trabalhos do autor. E, talvez, Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas? seja a obra mais pontual dele sobre o tema. Se estamos refletindo sobre a nossa própria existência, como não perceber o que a religião traz de sentido, seja ele positivo ou negativo. Todas essas ideias ficam centradas na figura de Mercer e o mercerismo. John Isidore, outro ignorado pela trama cinematográfica, é um dos personagens do livro mais conectados ao mercerismo. Não há uma explicação de fato sobre o que é Mercer. Alguns o entendem como um Deus, uma entidade mágica, mas todos os humanos já passaram pela experiência de se conectarem com ele pelo menos uma vez. Tal conexão também é bem confusa e pouco explicada dentro da obra, mas dá a entender que ocorre uma grande epifania psíquica e moral no encontro com Mercer e suas pedras.
Porém, o que mais importa dentro da história, pelo menos para o autor deste post, são os replicantes.
Se humanos já sofrem o suficiente, imagina aos seres em que a vida é, simplesmente e friamente, negada. Os androides, sem licença empresarial/política, estão proibidos na Terra, e os blade runners são os responsáveis para os aposentarem. Roy Baty, Irmgard Baty, Pris Stratton, Rachael Rosen, Luba Luft, Polokov e Garland, entre outros, representam os androides e a lista de recompensas de Rick Deckard. Todos estes personagens tem seus momentos gloriosos dentro da trama, as passagens que os envolvem colocam em julgamento a divisão existente entre o real e o artificial. Suas concepções pessoais sobre o que eles são e o que a vida significa nos coloca na posição de os acharmos mais humanos do que os próprios. Há um diálogo entre Luba Luft e Deckard, em que a replicante afirma: “A imitação é a melhor forma de vida.” Ou quando descobrimos que a real ocupação de Roy Baty nas colônias era de farmacêutico, e ele dava remédios alucinógenos para si e outros replicantes, que são impossibilitados de se conectarem com Mercer. Qual é justificativa para esse ato? Ele queria se aproximar de Deus.
É aqui que chegamos em um dos melhores momentos do livro. Significado e Deus se relacionam quando percebemos que é o que muitos de nós acreditamos. O amor que a humanidade sente por algum Deus, dependendo da religião, é só uma troca pela verdadeira necessidade humana: buscar seu significado. O replicante, portanto, é ser humano, porque a busca por Deus é a tentativa máxima de procurar justificativas para a existência. Sem crenças, ou sem descrenças, o que nós seríamos? E se os replicantes também buscam por respostas, por que nossas dúvidas valeriam mais que as deles?
Quando nos deparamos com tais perguntas, Philip K. Dick não se contenta só com isso, e destrói tudo o que as pessoas acreditavam. Mercer, na verdade, era um ator contratado para participar de uma produção cinematográfica, esta, que é a experiência conectiva do mercerismo. E, chegamos no desfecho mais arrebatador: a única prova que os humanos tinham de empatia se tornou lágrimas na chuva, parafraseando o final do filme – que não se assemelha em nada com o do livro. Mesmo que esta descoberta fique limitada só para os personagens principais.
Isidore, um “cabeça de galinha”, – termo criado para se designar aqueles que foram afetados pela radiação da Poeira, num sentido mental – que acreditava firmemente no mercerismo, vê sua crença se desmantelar. Sentia-se deslocado dentro da sociedade pelos seus problemas mentais, agora, parece ter sentido seu afastamento total. Quando ocorre o fato, entretanto, Isidore tenta compreender o que aconteceu, e discute com Mercer sobre o plano de fundo do local de conexão, que se assemelhava a uma paisagem natural, mas que era uma pintura. Mercer revela, enfim, que Isidore nunca percebeu porque sempre estava muito a frente, e nunca olhou por um ângulo mais distante.
O que prova, definitivamente, que os replicantes tinham um olhar mais apurado e profundo do que os seres humanos. Mercer é uma fraude, e a prova de empatia que dava significado a tantas insignificantes vidas foi desmantelada por androides marginalizados. O teste Voigt-Kampff, que diferencia humanos e replicantes através de respostas empáticas, parece não fazer mais sentido. Assemelha-se com a vida de Rick Deckard, que conseguiu, no fim, aposentar todos os androides restantes, mesmo que sua concepção de vida tenha se alterado. Enquanto Phil Resch, um dos outros caçadores, afirma que os blade runners são a divisão moral entre o real e o artificial, Deckard se depara com a conexão entre os dois contextos. Este homem, o pior dos homens, entende o real significado de empatia. Sua dúvida se Luba Luft era uma replicante, o relacionamento sexual com Rachael e, sua posterior demissão, resultam na sua evolução ética e igualitária.
Philip K. Dick constrói um futuro distópico que busca nos fazer refletir sobre o real cenário das coisas. Usando Rick Deckard como a representação perfeita e única da humanidade, Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas? é uma obra excepcional e genialmente trabalhada por um dos maiores autores da ficção científica. Em uma jornada simples de um caçador atrás de suas meras recompensas, nos deparamos com novas perspectivas sobre o como vivemos e o que fazemos enquanto estamos aqui. Não há uma definição exata do porquê, e quando se acaba a leitura, muito provavelmente não ocorrerá uma epifania sobre o sentido da vida. A obra não é sobre buscar respostas, mas de se contentar na ausência delas.
E pensar que tudo isso foi por causa de uma ovelha elétrica…