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Reze para a Escuridão de David Small não te pegar

Todos nós temos nossa cruz para carregar. Todos temos as nossas feridas, que doem e correm o risco de serem reabertas a cada nova recaída. Mais de uma década após o lançamento de Cicatrizes no Brasil pelo hoje finado selo Barba Negra, criado à época pela editora Leya para sua linha de quadrinhos, David Small retorna com sua segunda e até o momento mais recente Graphic Novel lançada em terras tupiniquins. Seguindo o mesmo padrão da obra anterior, Small mais uma vez oferece ao leitor traumas que, devido seu alto teor de pessoalidade, dificilmente são compartilhados com pessoas desconhecidas.

O grande espaço de tempo entre as duas não faz disso um hiato espantoso: mesmo com uma vasta bibliografia em livros ilustrados, o narrador conta somente com os quadrinhos Cicatrizes e Escuridão em seu currículo, lançados em 2009 e 2018, respectivamente. Entretanto, sua trajetória mais modesta em outro segmento não o impede de expor aqui seu lado mais sombrio e perturbador: diferente da maioria de seus livros, em que conta histórias mais alegres, coloridas e em grande parte destinadas ao público infanto-juvenil, Small tem nos quadrinhos uma faceta totalmente oposta e, sem a necessidade de um pseudônimo para separar as duas vertentes, regurgita suas mais tenebrosas experiências narrativas e as oferece ao leitor adulto.

Filho de um ex-militar fracassado que sequer sabe sua idade, Russell Pruitt é obrigado em plenos anos 50 a cruzar os Estados Unidos da América com seu genitor em busca de dias melhores após a separação e fuga de sua mãe com um jogador de futebol americano. Prontamente dispensados a morar com sua tia em um bairro nobre de Pasadena, pai e filho seguem para o sul e se instalam no pequeno município de Marshfield, onde o patriarca consegue o emprego de professor de inglês em uma penitenciária e Russell precisa recomeçar em um dos piores cenários para um adolescente: uma nova escola com novas pessoas e nenhum conhecido.

IMAGEM: Pinterest.com

Em 2017, ano exatamente anterior à sua publicação original, cerca de 41 milhões de estadunidenses (ou 13% da população total do país) estavam em condições econômicas que os colocavam na faixa de pobreza do país mais rico do planeta. Além disso, segundo dados do Banco Central norte-americano, a dívida total das famílias estadunidenses subiu U$1,06 trilhão em 2021, sua maior alta em 14 anos, chegando a U$15,60 trilhões se somada ao montante já alcançado nos anos precedentes. Assim, temos em Escuridão uma escancarada realidade que, apesar da tentativa de ser escondida, é expressiva e arde bem no coração da nação considerada por si mesma a “terra dos livres e lar dos valentes”, mas que também assiste a seus filhos cavarem profundos buracos em que dificilmente conseguem sair.

Em vias de entrar na adolescência, Russell encontra-se justamente nessa situação junto à sua família, ou ao menos uma sombra, tão fraca que se torna praticamente uma penumbra, do que sobrou dela. Sua figura paterna, tantas vezes ausente e egoísta, coloca seu filho sozinho em uma realidade cruel em que precisa lidar com as adversidades divididas em um calvário contendo seu prólogo e mais 17 capítulos. O protagonista ainda com apenas pouco mais 13 anos de idade vividos precisa aprender a driblar o descaso familiar, falta de recursos e bullying sofrido por ele de colegas da escola para viver na medida do possível, ou ao menos sobreviver no mundo atroz oferecido para ele.

IMAGEM: Pinterest.com

Uma das poucas tábuas de salvação para Russell encontram-se na Sra. Wen, chinesa proprietária do quarto inicialmente alugado pelo pai do garoto. Embora por muitas vezes justificáveis, as advertências de seu também estrangeiro marido não privam Wen de tratar, seja por pena ou esperança, Russell como o filho que ela nunca teve, preparando suas refeições e tentando dar o mínimo de assistência ao rapaz que na maioria das vezes reluta em receber afeto e parece irrecuperável. Em outra ponta, Warren McCaw surge como seu companheiro de classe excêntrico e que compartilha dos mesmos problemas de exclusão social que Russell enfrenta: o rapaz que caminha sempre com seu rato de estimação propõe ao garoto desamparado uma amizade que com o tempo ganha laços mais íntimos que Russell posteriormente acaba aceitando em troca de recompensas financeiras. O pouco texto na maioria das passagens é compensado pelo traço cru e impactante expressa-se mais do que um sem número de palavras.

Escuridão é uma obra depressiva e angustiante. Chega a dar raiva ao ver como o protagonista não toma partido em ações necessárias durante a trama, e sua inação acarreta em consequências extremamente graves. O mais chocante é ter ciência de que seu conteúdo é baseado em fatos reais, narrados por pessoas próximas ao autor. Ou seja: amigos de Small viveram, presenciaram tais atrocidades e foram incapazes de fazer qualquer coisa a respeito. Julgar acontecimentos da vida alheia sendo apenas espectador muitas vezes é uma ação fácil e covarde, e pode parecer soberba da parte de quem pensa dessa forma questionar como tais personagens não foram capazes de atitudes que pareciam óbvias, mas quando a vida de alguém está em jogo é necessário que algo seja feito, pois o caminho pode ser sem volta.

A edição da Darkside possui diversas modificações se comparada com a versão original publicada nos EUA: Além de um título mais curto que o inicial Home After Dark, o projeto opta por uma nova capa com ilustração extraída de uma das mais de 400 páginas da história, mas que por fim acaba sendo mais atrativa que a imagem designada inicialmente para a função ou qualquer uma das outras versões produzidas. Ademais, o formato um pouco maior que o A5 e a impressão em papel offset é mais que o suficiente para demonstrar ao máximo a arte em preto e branco com tons de cinza, que acompanha além do texto notas de rodapé para explicar termos que remetem à cultura norte-americana, mas que no Brasil são de pouco conhecimento. Na questão técnica, não há ressalvas a serem feitas.

David Small te arrasta a um universo real e desconcertante e convém ao leitor estar minimamente em dia com o controle de suas faculdades mentais e emocionais antes de embarcar no enredo, principalmente por precaução para não ser influenciado negativamente pela trágica história aqui presente.

 

Escuridão
David Small (roteiro e arte)
Lielson Zeni (edição)
Bruno Dorigatti (tradução)
Retina Conteúdo (revisão)
416 páginas
16,3 x 23 cm
R$89,90
Capa dura
Darkside
Data de publicação: 11/2021

 

 

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19.999 Léguas Submarinas explora o desconhecido até para os quadrinhos Disney

Não era surpresa que um dia uma nova versão de 20.000 Léguas Submarinas ganharia vida nas mãos da Disney. Já no prefácio temos uma confissão do roteirista Francesco Artibani demonstrando o forte elo entre Julio Verne e o maior conglomerado de entretenimento já visto na face da terra. Assim como as ideias do mestre da ficção científica, os planos Disney para suas obras foram muito além do que se imaginava pela compreensão humana, passando por filmes, atrações de parque, animações, e, claro, quadrinhos.

Nesse último quesito, a lista abrange vários outros criadores e de muitos nichos: de acordo com o site Guiadosquadrinhos.com, a Magnum Opus verniana foi abraçada por ao menos 11 quadrinhos diferentes publicados no Brasil, sendo quatro delas versões Disney. Dentre essas, uma já saiu em seis oportunidades diferentes no mercado nacional: A adaptação em quadrinhos 20.000 Léguas Submarinas que, como o próprio título idêntico ao livro sugere, trata-se da versão cinematográfica de 1954 transposta para o papel; ocupando o segundo lugar em republicações, temos O Mistério do Nautilus, publicada originalmente em Topolino nº1889 de fevereiro de 1992 com quatro aparições ao todo e completando o pódio vem 20.000 Ligas Submarinas, datada de abril de 1975 em Topolino nº1011. Mesmo pertencentes a épocas e estúdios diferentes, o que resultou em várias reedições no mercado brasileiro, as três versões foram reunidas em um único volume de nossa biblioteca: Clássicos da Literatura Disney nº12, em agosto de 2010.

Dentre tantas opções, qual seria então o diferencial dessa que, dentre todas, é a única lançada pela Panini? A resposta é mais simples do que parece: além de inédita, 19.999 Léguas Submarinas é fruto de mais uma colaboração entre Francesco Artibani e Lorenzo Pastrovicchio, dupla responsável por diversos capítulos d’O Superpato, além das histórias Aventura Sob Medida e A Ilha Misteriosa, também baseada em um livro de Julio Verne. Além disso, vale destacar que 19.999 Léguas é a única que pode ser considerada de fato uma paródia literária Disney, pois tanto O Mistério do Nautilus quanto 20.000 Ligas Submarinas, mesmo contanto com personagens Disney como protagonistas, não seguem a trama original e usam somente determinados elementos como referência ao trabalho mais famoso.

Imagem: Divulgação/Panini Brasil

Por seguir de modo mais fiel o enredo original, aqui Mickey assume o papel de Professor Ratonax (paródia de Annorax) que aceita a missão de, ao lado de Donald O’Quack, Ned Baf (originalmente Ned Land) e Capitão Farrablot solucionar caso de uma suposta criatura que aterroriza os sete mares. Após mais um dia de caça, os destemidos tripulantes do navio Alabama são tragados acidentalmente para o fundo do mar e após um inesperado resgate passam a residir justamente no veículo marítimo que outrora acreditavam ser um monstro marinho: o Nautilus, criação máxima da engenharia e de seu comandante, o Capitão Nemo. A versatilidade dos personagens Disney faz essa nova adaptação cair como uma luva em cada um dos personagens escolhidos para designar seus papeis. Apesar de apresentarem características diferentes do usual e mais próximas da trama literária usada como referência, a essência de Mickey, Donald, João Bafo-de-Onça, Mancha Negra e Pateta é preservada.

A respeito do último citado, a escolha do atrapalhado melhor amigo do Mickey pode ser considerada à primeira vista arriscada para assumir o papel do astuto Capitão Nemo, e de fato no início da leitura é de se estranhar seus recursos para aqui se desenvolver como protagonista, mas Artibani consegue, mesmo tomando como base um roteiro adaptado, desenvolver um novo Pateta diferente do visto na série pastelão Pateta Faz História e mais próximo da original Pateta Repórter, criado por Teresa Radice e Stefano Turconi.

Interessante também a invenção por parte dos autores de Mecanomarujos para substituírem os humanos que faziam parte da obra original. Mesmo que sendo assumidamente uma estratégia para economizar tempo nas ilustrações, as simples figuras dos imediatos do Capitão Nemo trazem um frescor gráfico à obra tantas vezes retratada em diversas mídias.

Imagem: Divulgação/Panini Brasil

Assim como todas as edições de Graphic Disney lançadas pela Panini, o volume de 19.999 Léguas Submarinas é complementado por extras como esboços, bloco de notas e entrevistas com os autores, assim tornando a edição idêntica à versão original italiana. Dentre os bate-papos, temos uma conversa com Stefano Zanchi, que trabalhou como designer do Nautilus de brinquedo distribuído aos leitores do já citado semanário Topolino, onde 19.999 Léguas foi publicado pela primeira vez no ano de 2020, data em que se completava 150 anos da primeira edição do romance. É uma pena que em nosso mercado esse tipo de brinde seja inviável, muito por conta da cada vez mais restrita tiragem e público de nossas HQs.

Com mais esse tomo, chegamos a uma grande quantidade de volumes da série Graphic Disney lançadas pela Panini desde 2018. Por volta de seis volumes ainda continuam inéditos, se desconsiderarmos a extensa série do Superpato, que tem até o momento nove partes lançadas dentro da mesma coleção. O que a Panini prepara para o heróico Alter Ego de Donald? Ainda não se sabe, mas é esperado que tal mistério seja solucionado em breve, tal qual Nemo e seus subordinados aqui desvendam as antes desconhecidas profundezas do oceano.

19.999 Léguas Submarinas
Francesco Artibani (roteiro)
Lorenzo Pastrovicchio (arte)
Marcelo Alencar (tradução)
Fati Gomes (revisão)
Panini Comics
Capa dura
72 páginas
20,5×31,5 cm
R$59,90
Data de publicação: 12/2021

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Era outra vez como se fosse a primeira

Não eram para serem contadas em livros repletos de ilustrações meigas, teatros de fantoches, filmes destinados ao público infantil e nem de longe em rodas de sala de aula do jardim de infância. Provenientes da oralidade baseada em mitos e superstições, as fábulas originais tinham como principal objetivo trazer medo e alertar sobre os riscos do cotidiano de uma época em que as florestas escuras reinavam sobre a terra.

Sim, os Irmãos Grimm te enganaram mais vezes que seus familiares quando prometiam comprar para você aquele brinquedo da vitrine quando estivessem já no caminho de volta para casa. Mas pense no lado bom: ao menos você, diferente dos contos originais, provavelmente não foi violentado por aproveitadores que se passavam por “príncipes encantados” ou mutilado por animais selvagens ao se perder em uma vegetação densa que engolia subitamente quem ousasse adentrá-la. Ao menos espero eu que não tenha chegado perto de passar pelas mesmas situações, pois Era Outra Vez – O Lado Sombrios dos Contos de Fadas resgata parcialmente os elementos originais de histórias tradicionais e aqui nem sempre o final é feliz.

IMAGEM: amazon.com.br

Com trabalhos que vão de 3 a 14 páginas, cada um dos cinco capítulos contém uma trama já muito conhecida para leitores habituais ou apenas ouvintes: João e Maria, Cinderela, Branca de Neve, Chapeuzinho Vermelho e A Bela Adormecida aparecem exatamente nessa ordem no recorrer do volume e todas são individualmente dedicadas pelos autores Carlos Trillo e Alberto Breccia a alguém e sendo colegas de profissão a maioria dos homenageados, como Horácio Altuna, Carlos Killian e Enrique Lipszyc, este último o fundador da Escola Panamericana de Arte e Design, situada em São Paulo – SP.

É precisamente nas duas habilidades lecionadas pela escola do citado amigo dos autores que Era Outra Vez… chama mais atenção: aqui, a arte de Breccia ultrapassa a abstração vista em Buscavidas e atinge sua fase mais expressionista. As figuras disformes e subjetivas que compuseram o quadrinho anterior da mesma dupla e também lançado pela Comix Zone agora ganham cores intensas e gritantes, unidas a uma textura que tergiversa o reconhecimento usual de ser apenas em duas dimensões. Aliado a técnicas mistas como colagem de tecido e preenchimento com outros materiais, o traço do uruguaio mais argentino das HQs marca o papel com ideias lançadas por ele inicialmente em 1979, mas que se tornariam recorrentes apenas muito tempo depois nas mãos de artistas como David Mack e Dave Mckean.

Diferentes técnicas de colagem por Breccia, Mckean e Mack. IMAGENS: Amazon, Pinterest e Dark Horse

Assim, Trillo e Breccia relatam contos de um pai que deliberadamente força seus filhos a se perderem na mata fechada em troca de favores sexuais prometidos por sua atual esposa, crianças que comemoram o assassinato de sua madrasta, uma garota pobre que em busca de realizar o sonho de encontrar o amor de sua vida aceita ser explorada por um programa de televisão, dentre outras trágicas desventuras que acabam por trazer o conteúdo da publicação para um lado bem mais próximo do cotidiano do que se poderia esperar. Apesar de ser inicialmente surpreendente, fica notório que a semelhança com os tempos atuais também era intencional por parte da dupla criativa, já que determinadas referências ao período de publicação original saltam aos olhos do leitor em alguns capítulos.

IMAGEM: amazon.com.br

Dando continuidade à sua biblioteca argentina de histórias em quadrinhos, a Comix Zone segue seu molde de publicação com formato 21×28,5 cm, papel offset, capa dura e lombada, além do recorrente marcador de páginas como brinde. Deve-se destacar também o trabalho feito na capa do volume, de nível superior à edição original lançada na Itália em 1981 pois não só Era Outra Vez… como outros lançamentos de quadrinhos argentinos que chegaram em massa às nossas livrarias e comic shops nos últimos anos não têm uma ilustração original designada para ser sua capa, uma vez que muitas dessas histórias foram publicadas  originalmente em revistas junto à outras HQs da época.

A leitura de Era outra Vez… é rápida e satisfatória. Mesmo distante de ser uma obra-prima, ainda mais considerando a extensa bibliografia dos autores, temos uma publicação indicada não só aos entusiastas habituais de histórias argentinas ou seus quadrinistas envolvidos, mas também para os que procuram uma visão diferente da que já estamos acostumados para os contos aqui reunidos.

Era outra Vez – O Lado Sombrio dos Contos de Fadas
Carlos Trillo (roteiro)
Alberto Breccia (arte)
Jana Bianchi (tradução)
Audaci Junior (revisão)
Comix Zone
Capa dura
64 páginas
21×28,5 cm
R$79,90
Data de publicação: 02/2022

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Celestia e seu indecifrável amanhã

“E, assim como trouxemos a imagem do terreno, assim traremos também a imagem do CELESTIAL.”

I Coríntios 15:49

Dificilmente há quem nunca leu ou ouviu o adjetivo celestial. Sua conotação divina intriga até os mais céticos, pois nada é mais desafiador que o desconhecido. Causas, motivos e razões são embaralhadas tal qual um quebra-cabeça com um sem número de peças a ser montado em que muitos desses fragmentos ainda podem ser componentes falsos. E, exatamente em tantas perspectivas dúbias, o quadrinista italiano Manuele Fior se debruça em seu novo título lançado no Brasil.

Aqui, a trama gira em torno de Pierrô e Dora, dois jovens inconformados com o que o destino reservou às suas vidas por habitarem Celestia, ilha de pedra construída há mais de um milênio e usada como refúgio após o nível do mar subir a ponto de invadir expressiva parte da terra firme que até então cobria o planeta. Ambos os personagens são telepatas e possuem seus demônios pessoais: enquanto Pierrô reluta em aceitar a convivência com Doutor Vivaldi, mentor de outros jovens de mesmo dom e seu pai, Dora encontra obstáculos para desenvolver suas habilidades e por isso acaba por vezes, ao vasculhar a mente de outras pessoas, trazendo visões às quais os pesquisados não tinham o menor interesse em revisitar, desenterrando o passado sombrio destes indivíduos, inclusive de Pierrô.

IMAGEM: pipocaenanquim.com.br

Em busca de respostas para seus problemas, os dois fogem da ilha em busca do mundo exterior. Lá fora, encontram uma humanidade comandada por crianças anônimas, como num processo ainda em fase embrionária de reconstrução. Apesar da estrutura ainda rudimentar, ainda não há perspectiva e tampouco prazo para a conclusão de seu projeto: assim como até hoje cientistas buscam explicações a respeito de fases do processo de início da vida, não há como ainda ter certeza do que se passa nessa etapa ou de quanto tempo será sua duração. Com explicações vagas e pouco elucidativas, Pierrô e Dora retornam à sua terra natal procurando o que pode ser o esclarecimento de suas funções, mas a resposta demonstra-se mais difícil de ser encontrada do que controlar a habilidade de telepatia com a qual já estão acostumados.

IMAGEM: pipocaenanquim.com.br

Portanto, Celestia não é uma obra de única interpretação. Seu início e fim são como assistir a um longa-metragem já passada sua cena de abertura e interromper a sessão antes de chegar ao encerramento. A grosso modo, é justamente isso que ocorre em grande parte da vida, pois dificilmente é planejado com exatidão como esta terá seu desfecho. Os habitantes da ilha de pedra, perdidos no que é concernente a seu futuro, afogam-se em si mesmos e seus caminhos nebulosos, que provocam o leitor a tentar desvendar o que de fato têm a ver as atitudes de cada um dos personagens e como cada uma se conecta.

Em sua terceira obra publicada no mercado nacional, esta é a narrativa gráfica mais longa de Fior. Entretanto, sua leitura é rápida, muito pela ausência de textos longos e uma arte limpa de cores claras que em algumas passagens ironicamente parecem remeter a um paraíso na terra que na verdade foi devastada e agora agoniza.

IMAGEM: pipocaenanquim.com.br

O já citado estilo de Fior não tem grandes diferenças se comparada aos seus outros dois trabalhos publicados por aqui: tanto A Entrevista (Mino, 2018) quanto Cinco Mil Quilômetros Por Segundo (Devir, 2018) possuem a mesma diretriz ao marcar o papel com seu texto e imagens e seu jogo de cores que em várias passagens lembram Lorenzo Mattotti e reforçam uma maestria sinestésica já vista antes em Cinco Mil… e que de forma alguma pode ser considerado um erro ao se repetir em Celestia, cuja bela arte deve ser vista como a sequência na afirmação de um traço autoral, e não redundância.

A edição da Pipoca & Nanquim é primorosa e acerta na escolha de publicar a versão integral, como saiu recentemente na Itália. O capricho no corte de página pintado em azul lembra a Bíblia Sagrada onde, segundo o Dicionário Bíblico Online, sua palavra derivada celestial é citada ao menos 15 vezes e distribuída em diversos capítulos.

A questão de fé e esperança por dias melhores baseados em sua força embebeda os habitantes de Celestia, elevando suas expectativas assim como o nível do mar que destruiu o mundo com o qual estavam acostumados a viver. No fim das contas, independentemente de sua crença ou descrença, é isso o que move cada um de nós, deixando essa máxima bem acima do campo ficcional.


Celestia
Manuele Fior (roteiro e arte)
Michele A. Varturi (tradução)
Audaci Júnior (revisão)
Pipoca e Nanquim
Capa dura
276 páginas
22 x 28 cm
R$99,90
Data de publicação: 02/2022

 

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Quase nada é o que parece ser em A Mão Verde

Com o que você sonhou hoje? Muitos precisarão de um bom tempo para responder a essa pergunta e mesmo assim terão dificuldades. A conclusão para tal questionamento em alguns casos pode até ser clara, mas a maioria dos relatos é imprecisa, nebulosa ou até impossível de se recordar. Sonhos podem significar muito ou serem apenas uma forma de nossas mentes experimentarem o que ainda não provamos na realidade, e muitas vezes sequer chegaremos a vivenciar.

A Mão Verde, lançamento da Comix Zone, bebe justamente nessa água: de navegar por correntes sinuosas em que não se sabe ao certo até onde vão chegar. Durante o período de maior experimentalismo psicodélico da História da humanidade, Édith Zha e Nicole Claveloux entregam diversas narrativas curtas, despretensiosas e de arte espetacular. Embora nenhum capítulo ultrapasse 10 páginas, sua técnica de desenho que mistura tinta guache e aerógrafo demonstram uma inovação para a época que a coloca em um patamar revolucionário de obras como Saga de Xam e Kris Kool.

IMAGEM: Amazon.com.br

Porém, mesmo com o seu primoroso traço e maestria no uso de cores, que conquista a atenção de todos os que encaram suas páginas, tal nova possibilidade de contar histórias mostra em seu cerne ainda uma inconsistência relativa ao conteúdo expresso. No primeiro capítulo, exatamente o que dá título ao livro, temos uma conversa de apartamento entre uma mulher e uma ave a respeito de um vegetal capaz de se comunicar com ambos; Em A Noite Branca, a mesma protagonista visita o museu em que aparentemente trabalha e conversa com vários dos itens expostos por lá; Já no tomo O Medo Azul, a ave residente do apartamento, cansada de sua vida encastelada, busca liberdade ao sair da moradia que funciona como uma espécie de gaiola para o personagem, mas seus planos não são bem-sucedidos e ele volta ao seu endereço habitual.

IMAGEM: Comix Zone

Grande parte das histórias, principalmente as cinco primeiras –publicadas na revista Metal Hurlant no decorrer do ano de 1978– são praticamente ininteligíveis, justamente nos capítulos em que a parceria entre Edith Zha e Nicole Claveloux está presente. O resultado, como o próprio prefácio da edição, assinado por Jean-Louis Gauthey afirma, entrega “páginas suntuosas de narrativa desconcertantes [sic]”. Assim, denota-se que não há o que ser compreendido em sua essência, e sim somente apreciar um conjunto de ideias expostas. Apesar disso, tais capítulos se completam em única narrativa.

As seis últimas, criadas apenas por Claveloux e publicadas originalmente no periódico Ah! Nana são a priori mais palatáveis, muito pela maioria destas serem baseadas em contos famosos, mas o expressivo surrealismo ainda está presente e torna histórias como Pranca de Nefe e A Imbecil e O Príncipe Encantado experiências diferentes até para os que já conhecem tais fábulas desde antes de aprenderem a ler.

IMAGEM: Comix Zone

Tamanha petulância é proposital por parte das autoras? Provavelmente nunca saberemos, uma vez que, assim como em nossos sonhos, nem tudo é feito para ter uma explicação precisa. Por exemplo, há quem até hoje tente entender alguma ideia central que conecte todo o conteúdo de Um Cão Andaluz, curta-metragem de Luis Buñuel e Salvador Dalí, quando, na verdade, os próprios autores em vida afirmaram que a película consiste apenas de ideias soltas e desconexas. Apesar dos pesares, a confusão encontrada em A Mão Verde acaba não comprometendo o prazer de apreciar a história, desde que não se espere grandes explicações no decorrer das páginas e assim cada leitor pode chegar a uma conclusão diferente do que foi lido.

A edição da Comix Zone, baseada claramente na versão publicada em 2019 pela editora Cornélius, segue o padrão da maioria dos títulos já lançados pela editora, com formato álbum 21×28,5 cm em capa dura, lombada e com um bookplate não autografado como brinde. Além disso, temos o já citado prefácio composto por nove páginas introdutórias com texto e ilustrações que cumprem de forma necessária sua função de apresentar ao público a biografia de duas autoras as quais, mesmo com suas inovações narrativas, ainda eram nomes inéditos no mercado brasileiro. A parceria entre as autoras ainda se repete em Morte Saison (Fora de Época, em tradução livre) que, assim como A Mão Verde, contém histórias curtas e foi relançado na França em 2020 também pela Cornélius.

A Mão Verde não é uma antologia de fácil leitura e não se deve esperar uma compreensão direta de seu conteúdo. A obra como um todo serve melhor como uma coletânea de ideias e possibilidades de se expressar, e por isso é aconselhável que sua leitura deva ser feita da forma mais despretensiosa possível, com o mesmo intuito que tentamos interpretar até mesmo nossos devaneios mais próximos da narcolepsia, por mais absurdos que pareçam ser.

A Mão Verde e Outras Histórias
Édith Zhan (roteiro)
Nicole Claveloux (arte)
Fernando Paz (tradução)
Audaci Junior (revisão)
Comix Zone
Capa dura
96 páginas
21×28,5 cm
R$89,90
Data de publicação: 03/2022

 

 

 

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Popeye é muito mais que apenas um Homem ao Mar

A beleza e os mistérios que cercam o ambiente marítimo, porção maior na distribuição superficial de nossa crosta terrestre, em muito nos encantam desde nosso surgimento no planeta terra. Não é para menos: por muito tempo os maiores heróis de suas respectivas nações eram os navegadores, que de forma destemida lançavam-se rumo ao desconhecido para, além de descobertas no âmbito terrestre e novos parceiros comerciais, desbravavam territórios que, mitificados pela imaginação humana, eram em nossas cabeças habitados por maldições e criaturas fantásticas, que não recebiam forasteiros de forma amistosa.

O tempo passou e nossa relação com o mar também foi modificada. Dessa forma, inclusive nossas estratégias de transporte e exploração foram mudando, atendendo a demandas cada vez maiores. Tal industrialização pesqueira, assim como os grandes peixes que se alimentam dos menores em diferentes estágios de nível trófico, faz hoje os Estados Unidos da América serem o sexto maior país do mundo no ramo da aquicultura. Tudo isso a um custo: os pescadores independentes sofrem em uma batalha desproporcional com grandes empresas, e o lado mais fraco tende a sucumbir. EC Segar e seu famoso marinheiro parrudo de um olho só já exemplificavam a situação desde o início do Século XX, agora revisitada pela dupla Antoine Ozanam e Marcello Lelis.

Divulgação — Imagem: Skript

Apesar de sua popularidade, pouco se vê do Popeye de sua criação original que originou tiras dominicais, animações, longa-metragens e produtos alimentícios lançados inclusive no Brasil: temos uma narrativa mais madura, séria e diametralmente oposta à comédia pastelão outrora protagonizada pelo marinheiro e seus personagens secundários como Dudu, Olivia e Brutus, aqui chamado de Bluto, seu nome original.

Como faz a ressaca do mar, aqui o leitor é tragado por uma trama de leitura fluente e rápida, mas com elementos onde reina o tom de melancolia: Popeye é um marinheiro em decadência traído por seu ex-companheiro de embarcação que se juntou a uma empresa gigante no ramo de pescados. Desamparado, tenta sobreviver a qualquer custo junto a Bosco, seu colega de profissão que precisa sustentar a si próprio e a sua família. Apesar do protagonista já ser conhecido mundialmente, Popeye – Um Homem Ao Mar nos brinda com um lado nunca antes visto.

Divulgação — Imagem: Skript

O roteiro de Ozanam é primoroso a ponto de ser necessário agradecer ao mesmo por, como o próprio confidenciou em sua nota de agradecimentos, não ter abandonado o projeto e seguir em frente apesar dos percalços. As desventuras são frequentes e Popeye une suas incontáveis sessões de pescaria mal-sucedidas a sua relação com Olivia, sua nova chance de ter uma companheira, muito tempo após sua amada Betty, imortalizada com uma tatuagem de coração em seu peito, partir. Sua convivência conturbada com seu pai e erros em série cometidos por outros personagens acrescentam maior drama e em definitivo retiram a alma romântica conhecida em volta do personagem. Popeye aqui é muito mais humano e muito menos, quase nada, sobre-humano.

A arte do brasileiro Lelis, apesar de suas expressivas aquarelas, precisam de determinado tempo para se acostumar. Seu traço é trêmula em todas as partes, causando uma estranheza à primeira vista pois, apesar da impressão de movimento causada, remete às situações em que temos dificuldades em processar imagens, como acometidos por náuseas ou efeitos provenientes de bebidas alcoólicas. Mesmo não sendo a primeira opção de ilustrador imaginada pelo roteirista, Lelis coloca sua marca pessoal e inconfundível no marinheiro mais conhecido dos quadrinhos, deixando rastros que nem a subida da maré seria capaz de apagar.

Divulgação — Imagem: Skript

Fruto de uma campanha de financiamento coletivo muito bem-sucedida, a editora Skript brinda o leitor brasileiro com uma edição primorosa em capa dura, papel couchê e formato álbum. Além da ótima impressão, a tradução e revisão de texto é digna de destaque, incluindo um prefácio biográfico assinado por Diego Moreau a respeito Segar e seus trabalhos nos quadrinhos e inspirações artísticas.

Embora a trama seja encerrada em um único volume, há visível espaço para um hipotético retorno dessa nova versão de Popeye e deveria sim ser pensada com zelo. Há muitos mistérios e aventuras nos aguardando em alto-mar e ainda temos muito o que aprender e descobrir sobre ele.

Popeye – Um Homem ao Mar
Antoine Ozanam (roteiro)
Lelis (arte)
Marcio dos Santos Rodrigues e Monica Cristina Corrêa (tradução)
Ester Gewehr e Diego Moreau (revisão)
Skript
Capa dura
120 páginas
20×28 cm
R$109,90

 

 

 

 

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Estamos constantemente Aprendendo a Cair

Mantendo sua tradição de apresentar ao leitor quadrinhos europeus alternativos, a Nemo, selo de histórias em quadrinhos do Grupo Autêntica, traz ao mercado mais um título de autor estreante no Brasil: Aprendendo a Cair, do quadrinista alemão Mikaël Ross.

Ao contrário do que muitos imaginam, não estamos todos no mesmo barco. No máximo, estamos todos no mesmo mar, porém alguns têm embarcações luxuosas, outros possuem botes, uma outra parcela conta com canoas rudimentares e  muitos outros, sem a condição mínima, acabam se afogando sem um colete salva-vidas sequer. Todos passam por momentos complicados e de superação, mas as condições variam para cada indivíduo, e para uns a volta por cima tende a ser bem mais desafiadora. Aqui, Noel é um jovem aparentemente normal aos olhos de quem o vê sem observar atentamente. É mais um garoto berlinense fã da banda AC/DC, com fixação por capas de super-heróis, que gosta de marshmallows e ajuda sua mãe nas compras de supermercado. Mas, ao observar suas atitudes e as somando à sua forma de se comunicar e agir, logo se percebe sua condição, que necessita de cuidados. Por isso, Noel é protegido com zelo por sua mãe.

IMAGEM: cortesia Editora Nemo
IMAGEM: cortesia Editora Nemo

Como a queda de um vaso de cristal, despedaçando no chão em incontáveis estilhaços após ser vítima de uma ação involuntária, a vida de Noel muda após sua genitora, pessoa à qual depende totalmente sua vida, sofre um derrame e vem a falecer. Sendo menor de idade, sem outros familiares e principalmente por suas condições especiais, o desafortunado garoto é transferido contra a sua vontade do apartamento onde sempre viveu para um centro de cuidados onde precisa conviver com pessoas em mesma situação social e clínica, porém desconhecidas ao seu convívio. A queda de Noel é devastadora e ele ainda não aprendeu como se levantar, ainda mais levando em consideração sua capacidade diferente de perceber as situações.

IMAGEM: cortesia Editora Nemo

A trama tem seu valor: é louvável como foi inteiramente construída através da condição do protagonista, não só nos balões de diálogo, mas também nas caixas de texto. A narrativa é feita totalmente sob o olhar de uma pessoa inocente que vê o mundo de forma muito particular. O tema sensível e humano é um grande atrativo e todo o cuidado no traço e cores do autor também são dignos de nota, porém falta consistência na execução final.

IMAGEM: cortesia Editora Nemo

Algumas partes da história parecem não ter fim e são interrompidas abruptamente para dar lugar a outro acontecimento no capítulo seguinte. O anticlímax acaba presente em partes decisivas e assim afasta o apego a uma trama que estava até então sendo bem executada. Infelizmente, não se pode agradar a todos. Apesar da grande aceitação de público e crítica, colhendo frutos como o Prêmio Max und Moritz de 2020 na categoria Melhor Quadrinho em Língua Alemã e traduções e edições para diversos países, a obra não toca como se esperava.

Edições de Aprendendo a Cair em diversos idiomas. IMAGEM: mikaelross.com

Encomendada em celebração dos 150 anos da instituição Evangelische Stiftung Neuerkerode, Aprendendo a Cair é fruto de um mergulho do autor não só às instalações da fundação, mas também de convivência com os lá residentes. A imersão ajuda na compreensão do quão necessário é a atuação nessa área de assistência, que muitas vezes é tratada de forma invisível.

IMAGEM: cortesia Editora Nemo

A edição da Nemo segue os mesmos padrões de sua linha de quadrinhos quanto ao formato, capa e papel utilizados já há um bom tempo. Esta é apenas a terceira obra do quadrinista de Munique. Em 2021 justamente no ano em que completa 10 anos de carreira, Ross lançou seu quarto trabalho: Goldjunge (Menino de Ouro, em tradução livre) narra a juventude de Ludwig van Beethoven, que mais tarde se tornaria um dos maiores compositores da humanidade. Ainda não se sabe quando ou se outras HQs de Ross serão publicadas por aqui, mas a porta está aberta, e seu acolhimento não só no mercado brasileiro mas em outras partes do mundo tende a ser com similar esmero ao visto em Aprendendo a Cair.

Aprendendo a Cair
Mikaël Ross (roteiro e arte)
Renata Silveira (tradução)
Mariana Faria (revisão)
128 páginas
24 x 19 cm
R$69,80
Capa Cartonada
Nemo
Data de publicação: 09/2020

 

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Quadrinhos

O Voo de Polina

Pouco mais de um ano depois de seu último lançamento no Brasil (A Grande Odalisca, publicado em duas partes pela editora Pipoca & Nanquim), Bastien Vivés retorna ao mercado nacional com Polina, que narra a ascensão da dançarina Polina Ulinov com foco em sua relação com Nikita Bojinski, seu exigente e carrancudo professor.

É curioso como esta obra pode ser comparada como a real carreira de Bastien Vivés pois, assim como a protagonista, o autor apareceu na cena de quadrinhos franco-belga ainda jovem e, com o passar do tempo, acompanhamos o seu desenvolvimento tal qual criança aprendendo a andar, falar e, com razão, arrancar sorrisos bobos de seus genitores a cada nova descoberta.

E é exatamente o que se sucede: acompanhamos atentamente todos os passos de Polina desde suas tímidas tentativas de desenvolvimento na carreira até alcance de níveis maiores e mais difíceis. Seu mentor e professor Bojinski sempre está lá como uma pagem ou uma ave que não deixa a cria desgarram de seu ninho e assim comprometendo voos mais altos da bailarina.

Apesar de ser lançado no Brasil depois, Polina foi originamente publicado antes de Uma Irmã em seu país de origem, e percebe-se bem a diferença da arte de Vivés: Seu traço aqui é muito mais simples e rudimentar, com rostos que muitas vezes sequer se completa o desenho de suas partes. Muitos personagens mesmo em destaque são retratados somente como silhuetas. Bojinski, por exemplo, sua barba em diversas oportunidades é mais vista que seus olhos.

Tal peculiaridade na arte remete muito aos momentos que vivemos na vida, onde algumas pessoas têm mais importância que outras, mas com o passar do tempo nossas relações vão se desgastando ou fortalecendo, assim ganhando ou perdendo valor, demonstrado na quantidade de detalhes nos atributos físicos retratados na narrativa.

Polina é o quarto título de Vivés publicado no Brasil, que teve sua estreia por aqui com O Gosto do Cloro, pela editora Barba Negra em março de 2012. Dentre todos, é segundo publicado pela Nemo, que segue o padrão de edição de Uma Irmã com capa cartonada e mesmo formato ainda explorando a bibliografia do autor em seu catálogo da Casterman. Uma sugestão de próximo passo possivelmente seria de Le Chemisier, também da Casterman, pela editora brasileira. Independente do que vier, Vivés tem um catálogo extenso, e vale a pena ficar de olho em boa parte de sua bibliografia.

Polina
Bastien Vivés (roteiro e arte)
Fernando Scheibe (tradução)
Eduardo Soares (revisão)
206 páginas
17 x 24 cm
R$59,80
Capa Cartonada
Nemo
Data de publicação: 04/2021

 

 

 

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Detective Comics Quadrinhos

Deus em Pessoa está dentro, fora e no meio de nós

Cada indivíduo guarda dentro de si sua versão a respeito de Deus. Independente do “ismo” religioso que a pessoa escolhe seguir ele está lá. Inclusive se seu “ismo” começar com “ate” pois, afinal de contas, até para não acreditar é necessário ter uma noção do que se escolhe não seguir. Independente do nome ao qual você usa para designá-lo, Deus de fato está em todos os lugares e inclusive nas HQs, onde mesmo no mercado nacional já foram feitas tentativas de quadrinhos religiosos como Anjos de Deus, Smilinguido e o recentemente afamado Dudão, que apesar sua produção datar de meados dos anos 90, ganhou notoriedade em 2020 não só pelo seu conteúdo, mas também pela representação física dos personagens.

Porém, em Deus em Pessoa, o nosso famoso Divino aparece em sua forma definitiva. Finalmente o Todo Poderoso ressurge no meio de nós e, como consequência, tem um inestimável número de perguntas para responder, principalmente por sua suposta ausência tão duradoura.

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Aqui, Deus vive no mundo real finalmente entre nós. Mas, diferente da bíblia, sua maior criação já não é mais a mesma. Mais do que isso: o retorno do Senhor estimula o lado consumista do ser humano. Sua volta promove o lançamento de parques de diversões, livros, enfeites natalinos, pelúcias, jogos de quebra-cabeça e etc. Mas, por incrível que pareça, nada disso é muito diferente do que já vemos em nossas vidas, pois afinal de contas muitos já usam a religião como forma de exploração comercial.

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Como já dito, cada um tem sua interpretação específica do Eterno, que durante toda a HQ de Marc-Antoine Mathieu não tem seu rosto revelado e curiosamente, nenhuma religião ou seita específica é retratada durante toda a narrativa. Não vemos destaques a padres, pastores, rabinos ou qualquer outro líder por mais que, aqui na terra, são os maiores difusores de suas palavras sagradas. Isso não interessa em primeiro plano, mas sim a versão mais simples de interpretação individual.

A estrutura gráfica deste título é, perdão pelo trocadilho, bem conservadora. O traço de Mathieu é simples e as únicas cores usadas são preto, branco e cinza. Mas nada disso é um demérito ao fim das contas, pois o forte da narrativa está em seu texto repleto de reflexões profundas e filosóficas sobre a ciência, sociedade e religião. Assim como em seus ensinamentos expressos nos livros sagrados, a palavra torna-se protagonista em Deus em Pessoa.

IMAGEM: Amazon
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A edição a Comix Zone mantém o padrão de seus títulos anteriores. Para uma editora ainda jovem, é louvável a manutenção de um lançamento diferente a cada mês e ainda com a mesma qualidade em edição e acabamento. Neste último quesito, vale como menção o trabalho feito principalmente nas páginas 29 e 30, onde a tradução dos textos expressos nas placas protesto e capas de jornal foram totalmente traduzidas e adaptadas ao nosso idioma e na página 59, onde diversas fontes próprias tiveram que ter suas letras adaptadas para a escrita da mesma palavra, no caso, Deus.

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Para a editora, vale a pena apostar mais em títulos franco-belgas, pois esse é somente o segundo lançado até agora pela Comix Zone. Apesar da já citada jovialidade da editora, essa escola de HQ ainda tem um bem menor número de lançamentos se comparados aos quadrinhos argentinos lançados pela mesma. Igual David Byrne nos anos 90, a CZ faz um ótimo trabalho descobrindo a América tal qual Cristóvão Colombo e Vicente Pinzón, mas ainda falta uma maior exploração no Velho Mundo, e é esperado que Deus em Pessoa marque essa retomada que se iniciou em Boca do Diabo e que se espere que não fique só nesses dois títulos.

Deus está vendo. Está por aí, por aqui, por acolá ou dentro e fora de nós. Ele está inclusive nas nossas HQs, seja em seu conteúdo ou no material utilizado para sua confecção. Não adianta tentar retira-lo de sua cabeça, pois quando se menos esperar ele aparece de surpresa, assim como nessa obra.

Deus em Pessoa
Marc-Antoine Mathieu (roteiro e arte)
Érico Assis e Fernando Paz (tradução)
Audaci Júnior (revisão)
128 páginas
29 x 21 cm
R$79,90
Capa Dura
Comix Zone
Data de publicação: 03/2021

 

 

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Detective Comics Quadrinhos

Quem é de fato Degenerado?

Desde que o Grupo Editorial Autêntica decidiu se aventurar no mercado de histórias em quadrinhos brasileiro fundando a Nemo, seu selo voltado a esse mercado passou por algumas transformações: começou intercalando entre material nacional e estrangeiro com autores consagrados do mercado franco-belga em publicações com grande formato e capa dura. Experimentando novas fontes e em busca de adaptação perante as exigências do mercado e público, estabeleceu-se com material autoral da cena alternativa europeia e norte-americana. Prestes a completar uma década de vida em 2021, a Nemo traz em seu mais recente lançamento Degenerado, um título que, mesmo que de forma indireta, tem muito a ver com suas mudanças ao longo desses anos.

Não é fácil ser alguém. Mesmo cada um em particular pode não saber profundamente quem é ou o que gostaria de ser. A vida e nossa forma de viver é feita de experiências, de riscos que trazem acertos, erros, vitórias e derrotas. Não existe vida sem risco. Em boa parte ou até por pura teimosia, só temos consciência do resultado de nossas escolhas caso as coloquemos em prática.

Paul Grappes e Louise Landy conheceram-se ainda jovens em uma confraternização entre amigos. Como diversos casais afogados na ingenuidade da paixão de um pelo outro, casaram-se desejando passar o resto de suas vidas juntos. Mas então veio o serviço militar e Paul, por uma lei que ia além de seu poder, precisou se alistar no exército. Então em 1914 estoura A Grande Guerra, a Guerra das Trincheiras, trincheiras que foram usadas não só para separar o militar recém-promovido a cabo de seus adversários, mas também de sua amada.

IMAGEM: Grupo Autêntica

Afetado pelos horrores que presenciou, Paul torna-se desertor no intuito de voltar aos braços de Louise e para fugir da prisão iminente aos que abandonam o campo de batalha, começa a se vestir e comportar como mulher assumindo a identidade de Suzanne. Porém, Paul aos poucos vai não apenas se adaptando, mas desfrutando de sua nova vida, assim percebendo que talvez agora sim era a pessoa que desejava ser e que sempre esteve dentro de si, e não a pessoa que era outrora e apresentava em seu exterior.

IMAGEM: Grupo Autêntica

Em uma alternância quase impossível, os desenhos de Chloé Cruchaudet conseguem ao mesmo tempo serem pesados e delicados. O clima pesado e os horrores da guerra coexistem em uma Paris retratada quase sempre em tons de cinza, salvo raras exceções onde as cores azul e vermelho, que representam na cultura popular liberdade e fraternidade na bandeira da França, gritam por espaço na narrativa densa como uma neblina.

Baseada em uma história real, Degenerado é em grande parte sobre uma crise existencial em consequência da guerra, mas pouco abordada ou sequer imaginada por muitos de nós. Suzanne na verdade pedia socorro dentro de Paul Grappes para mostrar que existia. A possibilidade de contar sua história que resultou no livro La Garçonne et L’Assassin mostra que sua necessidade de se esconder era na realidade a chance de se libertar adentrando em um novo mundo. O ser humano é frágil como uma casca de ovo, porém quase sempre é obrigado a ostentar-se tal qual uma pele grossa e pouco permeável como a de um réptil.

IMAGEM: Grupo Autêntica

Estabelecendo-se já há algum tempo em um formato característico, edição da Nemo segue os padrões anteriormente adotados pela editora, com capa cartonada e papel couchê em formato 25 x 19 cm. Esta é a primeira obra de Cruchaudet publicada no Brasil, e a escolha por Degenerado em sua estreia provavelmente deve-se à quantidade de prêmios arrebatados pela obra principalmente na França e Itália. Assim como já fez com outros quadrinistas da Europa, a exemplo de Fabién Toulmé e Gauthier, vale a pena apostar em outras obras da autora por aqui, mesmo outras sendo menos conhecidas ou agraciadas, mas ainda assim trazendo frescor ao mercado brasileiro. Como sugestão, vale conferir por exemplo Groenland Manhattan e La croisade des innocents, publicadas originalmente em 2008 e 2015.

Degenerado
Chloé Cruchaudet (roteiro e arte)
Renata Silveira (tradução)
Bruna Emanuele Fernandes (revisão)
190 páginas
25 x 19 cm
R$69,80
Capa Cartonada
Nemo
Data de publicação: 11/2020