Quadrinhos

Reze para a Escuridão de David Small não te pegar

Escrito por Marcus Santana

Todos nós temos nossa cruz para carregar. Todos temos as nossas feridas, que doem e correm o risco de serem reabertas a cada nova recaída. Mais de uma década após o lançamento de Cicatrizes no Brasil pelo hoje finado selo Barba Negra, criado à época pela editora Leya para sua linha de quadrinhos, David Small retorna com sua segunda e até o momento mais recente Graphic Novel lançada em terras tupiniquins. Seguindo o mesmo padrão da obra anterior, Small mais uma vez oferece ao leitor traumas que, devido seu alto teor de pessoalidade, dificilmente são compartilhados com pessoas desconhecidas.

O grande espaço de tempo entre as duas não faz disso um hiato espantoso: mesmo com uma vasta bibliografia em livros ilustrados, o narrador conta somente com os quadrinhos Cicatrizes e Escuridão em seu currículo, lançados em 2009 e 2018, respectivamente. Entretanto, sua trajetória mais modesta em outro segmento não o impede de expor aqui seu lado mais sombrio e perturbador: diferente da maioria de seus livros, em que conta histórias mais alegres, coloridas e em grande parte destinadas ao público infanto-juvenil, Small tem nos quadrinhos uma faceta totalmente oposta e, sem a necessidade de um pseudônimo para separar as duas vertentes, regurgita suas mais tenebrosas experiências narrativas e as oferece ao leitor adulto.

Filho de um ex-militar fracassado que sequer sabe sua idade, Russell Pruitt é obrigado em plenos anos 50 a cruzar os Estados Unidos da América com seu genitor em busca de dias melhores após a separação e fuga de sua mãe com um jogador de futebol americano. Prontamente dispensados a morar com sua tia em um bairro nobre de Pasadena, pai e filho seguem para o sul e se instalam no pequeno município de Marshfield, onde o patriarca consegue o emprego de professor de inglês em uma penitenciária e Russell precisa recomeçar em um dos piores cenários para um adolescente: uma nova escola com novas pessoas e nenhum conhecido.

IMAGEM: Pinterest.com

Em 2017, ano exatamente anterior à sua publicação original, cerca de 41 milhões de estadunidenses (ou 13% da população total do país) estavam em condições econômicas que os colocavam na faixa de pobreza do país mais rico do planeta. Além disso, segundo dados do Banco Central norte-americano, a dívida total das famílias estadunidenses subiu U$1,06 trilhão em 2021, sua maior alta em 14 anos, chegando a U$15,60 trilhões se somada ao montante já alcançado nos anos precedentes. Assim, temos em Escuridão uma escancarada realidade que, apesar da tentativa de ser escondida, é expressiva e arde bem no coração da nação considerada por si mesma a “terra dos livres e lar dos valentes”, mas que também assiste a seus filhos cavarem profundos buracos em que dificilmente conseguem sair.

Em vias de entrar na adolescência, Russell encontra-se justamente nessa situação junto à sua família, ou ao menos uma sombra, tão fraca que se torna praticamente uma penumbra, do que sobrou dela. Sua figura paterna, tantas vezes ausente e egoísta, coloca seu filho sozinho em uma realidade cruel em que precisa lidar com as adversidades divididas em um calvário contendo seu prólogo e mais 17 capítulos. O protagonista ainda com apenas pouco mais 13 anos de idade vividos precisa aprender a driblar o descaso familiar, falta de recursos e bullying sofrido por ele de colegas da escola para viver na medida do possível, ou ao menos sobreviver no mundo atroz oferecido para ele.

IMAGEM: Pinterest.com

Uma das poucas tábuas de salvação para Russell encontram-se na Sra. Wen, chinesa proprietária do quarto inicialmente alugado pelo pai do garoto. Embora por muitas vezes justificáveis, as advertências de seu também estrangeiro marido não privam Wen de tratar, seja por pena ou esperança, Russell como o filho que ela nunca teve, preparando suas refeições e tentando dar o mínimo de assistência ao rapaz que na maioria das vezes reluta em receber afeto e parece irrecuperável. Em outra ponta, Warren McCaw surge como seu companheiro de classe excêntrico e que compartilha dos mesmos problemas de exclusão social que Russell enfrenta: o rapaz que caminha sempre com seu rato de estimação propõe ao garoto desamparado uma amizade que com o tempo ganha laços mais íntimos que Russell posteriormente acaba aceitando em troca de recompensas financeiras. O pouco texto na maioria das passagens é compensado pelo traço cru e impactante expressa-se mais do que um sem número de palavras.

Escuridão é uma obra depressiva e angustiante. Chega a dar raiva ao ver como o protagonista não toma partido em ações necessárias durante a trama, e sua inação acarreta em consequências extremamente graves. O mais chocante é ter ciência de que seu conteúdo é baseado em fatos reais, narrados por pessoas próximas ao autor. Ou seja: amigos de Small viveram, presenciaram tais atrocidades e foram incapazes de fazer qualquer coisa a respeito. Julgar acontecimentos da vida alheia sendo apenas espectador muitas vezes é uma ação fácil e covarde, e pode parecer soberba da parte de quem pensa dessa forma questionar como tais personagens não foram capazes de atitudes que pareciam óbvias, mas quando a vida de alguém está em jogo é necessário que algo seja feito, pois o caminho pode ser sem volta.

A edição da Darkside possui diversas modificações se comparada com a versão original publicada nos EUA: Além de um título mais curto que o inicial Home After Dark, o projeto opta por uma nova capa com ilustração extraída de uma das mais de 400 páginas da história, mas que por fim acaba sendo mais atrativa que a imagem designada inicialmente para a função ou qualquer uma das outras versões produzidas. Ademais, o formato um pouco maior que o A5 e a impressão em papel offset é mais que o suficiente para demonstrar ao máximo a arte em preto e branco com tons de cinza, que acompanha além do texto notas de rodapé para explicar termos que remetem à cultura norte-americana, mas que no Brasil são de pouco conhecimento. Na questão técnica, não há ressalvas a serem feitas.

David Small te arrasta a um universo real e desconcertante e convém ao leitor estar minimamente em dia com o controle de suas faculdades mentais e emocionais antes de embarcar no enredo, principalmente por precaução para não ser influenciado negativamente pela trágica história aqui presente.

 

Escuridão
David Small (roteiro e arte)
Lielson Zeni (edição)
Bruno Dorigatti (tradução)
Retina Conteúdo (revisão)
416 páginas
16,3 x 23 cm
R$89,90
Capa dura
Darkside
Data de publicação: 11/2021

 

 

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Sobre o Autor

Marcus Santana

O que seria de nós sem quadrinhos?

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