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Quase nada é o que parece ser em A Mão Verde

Escrito por Marcus Santana

Com o que você sonhou hoje? Muitos precisarão de um bom tempo para responder a essa pergunta e mesmo assim terão dificuldades. A conclusão para tal questionamento em alguns casos pode até ser clara, mas a maioria dos relatos é imprecisa, nebulosa ou até impossível de se recordar. Sonhos podem significar muito ou serem apenas uma forma de nossas mentes experimentarem o que ainda não provamos na realidade, e muitas vezes sequer chegaremos a vivenciar.

A Mão Verde, lançamento da Comix Zone, bebe justamente nessa água: de navegar por correntes sinuosas em que não se sabe ao certo até onde vão chegar. Durante o período de maior experimentalismo psicodélico da História da humanidade, Édith Zha e Nicole Claveloux entregam diversas narrativas curtas, despretensiosas e de arte espetacular. Embora nenhum capítulo ultrapasse 10 páginas, sua técnica de desenho que mistura tinta guache e aerógrafo demonstram uma inovação para a época que a coloca em um patamar revolucionário de obras como Saga de Xam e Kris Kool.

IMAGEM: Amazon.com.br

Porém, mesmo com o seu primoroso traço e maestria no uso de cores, que conquista a atenção de todos os que encaram suas páginas, tal nova possibilidade de contar histórias mostra em seu cerne ainda uma inconsistência relativa ao conteúdo expresso. No primeiro capítulo, exatamente o que dá título ao livro, temos uma conversa de apartamento entre uma mulher e uma ave a respeito de um vegetal capaz de se comunicar com ambos; Em A Noite Branca, a mesma protagonista visita o museu em que aparentemente trabalha e conversa com vários dos itens expostos por lá; Já no tomo O Medo Azul, a ave residente do apartamento, cansada de sua vida encastelada, busca liberdade ao sair da moradia que funciona como uma espécie de gaiola para o personagem, mas seus planos não são bem-sucedidos e ele volta ao seu endereço habitual.

IMAGEM: Comix Zone

Grande parte das histórias, principalmente as cinco primeiras –publicadas na revista Metal Hurlant no decorrer do ano de 1978– são praticamente ininteligíveis, justamente nos capítulos em que a parceria entre Edith Zha e Nicole Claveloux está presente. O resultado, como o próprio prefácio da edição, assinado por Jean-Louis Gauthey afirma, entrega “páginas suntuosas de narrativa desconcertantes [sic]”. Assim, denota-se que não há o que ser compreendido em sua essência, e sim somente apreciar um conjunto de ideias expostas. Apesar disso, tais capítulos se completam em única narrativa.

As seis últimas, criadas apenas por Claveloux e publicadas originalmente no periódico Ah! Nana são a priori mais palatáveis, muito pela maioria destas serem baseadas em contos famosos, mas o expressivo surrealismo ainda está presente e torna histórias como Pranca de Nefe e A Imbecil e O Príncipe Encantado experiências diferentes até para os que já conhecem tais fábulas desde antes de aprenderem a ler.

IMAGEM: Comix Zone

Tamanha petulância é proposital por parte das autoras? Provavelmente nunca saberemos, uma vez que, assim como em nossos sonhos, nem tudo é feito para ter uma explicação precisa. Por exemplo, há quem até hoje tente entender alguma ideia central que conecte todo o conteúdo de Um Cão Andaluz, curta-metragem de Luis Buñuel e Salvador Dalí, quando, na verdade, os próprios autores em vida afirmaram que a película consiste apenas de ideias soltas e desconexas. Apesar dos pesares, a confusão encontrada em A Mão Verde acaba não comprometendo o prazer de apreciar a história, desde que não se espere grandes explicações no decorrer das páginas e assim cada leitor pode chegar a uma conclusão diferente do que foi lido.

A edição da Comix Zone, baseada claramente na versão publicada em 2019 pela editora Cornélius, segue o padrão da maioria dos títulos já lançados pela editora, com formato álbum 21×28,5 cm em capa dura, lombada e com um bookplate não autografado como brinde. Além disso, temos o já citado prefácio composto por nove páginas introdutórias com texto e ilustrações que cumprem de forma necessária sua função de apresentar ao público a biografia de duas autoras as quais, mesmo com suas inovações narrativas, ainda eram nomes inéditos no mercado brasileiro. A parceria entre as autoras ainda se repete em Morte Saison (Fora de Época, em tradução livre) que, assim como A Mão Verde, contém histórias curtas e foi relançado na França em 2020 também pela Cornélius.

A Mão Verde não é uma antologia de fácil leitura e não se deve esperar uma compreensão direta de seu conteúdo. A obra como um todo serve melhor como uma coletânea de ideias e possibilidades de se expressar, e por isso é aconselhável que sua leitura deva ser feita da forma mais despretensiosa possível, com o mesmo intuito que tentamos interpretar até mesmo nossos devaneios mais próximos da narcolepsia, por mais absurdos que pareçam ser.

A Mão Verde e Outras Histórias
Édith Zhan (roteiro)
Nicole Claveloux (arte)
Fernando Paz (tradução)
Audaci Junior (revisão)
Comix Zone
Capa dura
96 páginas
21×28,5 cm
R$89,90
Data de publicação: 03/2022

 

 

 

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Sobre o Autor

Marcus Santana

O que seria de nós sem quadrinhos?

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