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Skybourne: um quadrinho de ação e humor que mistura Rei Arthur com H. P. Lovecraft

Minissérie em cinco partes escrita e ilustrada pelo famoso Frank Cho – uma das figuras mais polêmicas da indústria moderna dos quadrinhos – Skybourne foi lançada em 2016 pela editora norte-americana BOOM! Studios e chegou ao Brasil recentemente através de uma bela edição encadernada da Mythos Editora.

E apesar de o nome não deixar nada muito claro sobre o teor desta série, a história de Skybourne reúne um vasto número de ideias que são apresentadas com muito humor negro e ação desenfreada, onde Cho e seu colorista Márcio Menyz criam um mundo bem ousado que trará elementos principais de Rei Arthur, que movem a história central, e até mesmo de H. P. Lovecraft.

Propositalmente raso, este quadrinho possui uma trama simples e direta: os três filhos de Lázaro são Abraham, Thomas e Grace Skybourne, e todos são dotados de habilidades incríveis como superforça e imortalidade. A Fundação Topo da Montanha foi criada para proteger a Terra de ameaças sobrenaturais, e há muito tempo a principal ameaça enfrentada foi um mago louco que visava acabar com a humanidade: o mago Merlin.

Todos os clichês de filmes de ação e espionagem são os pontos focais de Skybourne. Ação interminável, caracterização de elenco que se desenvolve com poucas imprevisibilidades e muitas cenas divertidas, dramas manjados, entre outros. Entretanto, essas características podem parecer empecilhos para a qualidade da história, mas encarando-a como se deve e da forma como o autor se propôs a apresentá-la, esta se transforma em uma surpresa agradabilíssima e descompromissada.

Frank Cho é dono de um traço extremamente limpo (e bonito) e como roteirista não perde tempo com muitos detalhes, mergulhando o leitor em uma narrativa cinematográfica após poucas páginas de leitura. A trama principal se desenrola com investigações e treinamentos com eventuais descobertas acerca do passado de alguns protagonistas, e rapidamente torna-se perceptível que além dos super-humanos, esta é também uma incrível história de monstros mitológicos.

Skybourne se inicia como uma aventura de ação com superseres, e termina trazendo seres míticos gigantescos (dragões, minotauros, centauros, ciclopes), com uma subtrama ainda mais apoteótica que pode liberar entidades cósmicas de suas prisões secretas, trazendo caos ao mundo. As lendas arturianas, vivas no mundo moderno, misturam-se aos avanços da tecnologia. E as cinco edições são de tamanha fluidez que a leitura passa literalmente voando.

E apesar da imprevisibilidade quase nula no desenrolar da história, o humor negro e bastante ácido é um dos pontos de destaque, tanto quanto as batalhas. Cho é muito exitoso em desenvolver contextos para quebrar a expectativa do leitor em seguida, entregando viradas de página que te pegam de surpresa e provocam risos ou choque sincero.

Thomas e Grace Skybourne são os heróis da aventura, com destaque especial para o primeiro. A enigmática Fundação Topo da Montanha também é desenvolvida com pinceladas de protagonismo por parte de alguns membros-chave da mesma, e o autor possui em suas mãos um universo que renderia mais histórias no mesmo teor desta primeira, com foco na ação e no deslumbrante visual.

Esta é a criação de um Frank Cho mais contido em alguns aspectos, porém extremamente livre e confortável em outros. Em momento algum esta aventura tenta reinventar a forma como os quadrinhos são encarados pelo público, e a sinceridade em se apresentar quase como um storyboard para um épico de ação dos cinemas é o maior mérito da produção.

As cores de Menyz são compatíveis com os traços claros do autor, e revezam muito bem as tonalidades entre os flashbacks, o presente e as monstruosidades. Os diálogos são competentes e batem com a premissa, e a forma como Excalibur e as lendas arturianas foram representadas ao longo dos anos nunca foi tão diferente e criativa quanto aqui.

Skybourne chegou ao Brasil em uma edição de 164 páginas encadernadas em capa dura com verniz aplicado e formato americano (26 x 17 cm), reunindo toda a série original, e o preço sugerido é R$ 72,90. Clique aqui para adquirir o encadernado com 35% de desconto.

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Aperta o play e viaje na batida de Na Quebrada – Quadrinhos de Hip Hop

Eu tinha entre dez e onze anos, não me lembro direito, quando minha mãe me presenteou com um vinil. Era o Funk Brasil 1. Ali foi meu primeiro contato para valer com esse tipo de som. Minha veia musical estava começando a ser moldada, obviamente eu era um moleque que escutava de tudo um pouco, os sambas nas festas das minhas tias, os rocks que meus primos ouviam, os forrós dos discos do meu pai, mas sem entender nada direito. O disco tinha raps que são muito diferentes dos que conhecemos hoje em dia. Logo na primeira faixa era uma música do Cidinho Cambalhota com participação da Dercy Gonçalves chamada Rap das Aranhas (uma espécie de continuação de Rock das Aranhas do Raul Seixas). Outros clássicos do funk carioca se decorriam ao longo de suas oito faixas no primeiro disco do icônico DJ Marlboro. Essa sempre foi minha referência para esse tipo de som.

Ao longo dos tempos me encontrei melhor no rock, mais precisamente nos punks hardcores da vida, mas sempre que dava aquela vontade voltava para o Funk Brasil. Até que anos mais tarde, na escola, um amigo me emprestou uma fita cassete. Vale lembrar que estamos situados aqui na década de 90 e esse era o nosso modo de compartilhar músicas. A fita tinha uma penca de raps do RUN-D.M.C. e fiquei tipo: “Puta merda! Que parada foda demais!”. Logo após eu fui conhecer os Racionais MC, e um foi puxando o outro. Até as bandas de rock que na época misturavam com rap ajudaram nesse conhecimento. Como o Planet Hemp, Pavilhão 9, Cambio Negro etc e tal.

Fiz essa pequena introdução para poder falar que Na Quebrada – Quadrinhos de Hip Hop da Editora Draco, me fez ter essa sensação novamente de estar descobrindo um novo mundo. Ao longo das suas 184 páginas me senti não apenas lendo um gibi. E sim escutando um disco de rap. As suas histórias me remeteram a canções e como uma ironia incrível, algumas você pode até cantar. Como Preta Maravilha Contra a União Golpista e Que Nem um Morcego. As letras (ou histórias) falam do cotidiano da comunidade, de preconceitos, de revolução, de correr atrás do seu sonho, de batalhar o seu sonho, a eterna luta contra os poderosos e de evoluir. Mas usando a magia que somente as HQ’s podem proporcionar. E faz todo o diferencial.

A primeira faixa é O Sampleador, com roteiro de Raphael Fernandes e arte de Braziliano, com uma bela história de um rapaz que tem um dom amaldiçoado que atormenta a sua vida. Depois o álbum pula para trama heroica Preta Maravilha contra a União Golpista com arte e texto de João Pinheiro. Aqui somos apresentados a uma super-heroína urbana que está em combate contra os poderosos iniciando uma revolução. A história toda é um grande rap e como disse antes, dá para ler cantando com uma batida imaginária na mente. Que Nem um Morcego do trio Cirilo S. Lemos, Giovanni Pedroni e o rapper De Leve. É a minha preferida da coletânea. A história do cativante Ramiro descobrindo o hip hop e iniciando nas batalhas de MC’s te abraça e te leva para um mundo fantástico. Fechando o “lado A” do disco Na Quebrada, vem a importante Meu Corpo, Minhas Regras escrito pela ótima Larissa Palmieri e com arte de Vitor Flynn. Uma trama cyberpunk que mistura fanatismo religioso, direitos das mulheres, machismo, corrupção e o poder da fake news. Mais atual impossível.

Virando para o “lado B” de Na Quebrada, começamos com Um Conto de Duas Cidades, onde dois grupos rivais se unem contra um mal comum que ameaça a todos. Um aviso bem real para os dias de hoje. O texto é de Felipe Cazelli e arte de Marc Weslley, com os desenhos mais bonitos da coletânea. Em seguida vem Darréu – A Lei do Mundo, uma divertida e leve trama escrita pelo entregador de gás Alessio Esteves e com artes de  Felipe Sanz. A história de dois meninos que queriam tirar uma onda com os amigos é a mais descompromissada da coletânea, lembrando até aqueles filmes gostosos de assistir como Goonies ou Uma Noite de Aventuras. Já em Olido de Juju Araújo e com o retorno de Braziliano na arte, trata da famosa arte urbana. Assim como a galeria homônima que fica em São Paulo, o texto abraça os traços grafiteiros de Braziliano e apresenta uma trama de poder, busca pelo sucesso e reconhecer suas raízes. O fechamento fica por conta da excelente O Rei do Groove que tem arte e texto de Guabiras. É uma grande homenagem ao hip hop mundial disfarçada em um conto fantástico de um DJ que beirava o fracasso e se torna um dos maiores. A história, em todos os seus quadros têm referências ao hip hop, é uma aula de história sobre o estilo com artistas dos mais variados tipos que contribuíram de alguma forma com o movimento. É bem legal ficar caçando as referências.

Além dos quadrinhos, o volume conta com uma introdução de Alê Santos, contador de narrativas negras (confira seu trabalho em sua conta no Twitter), e comentários do grande Gil Santos, o popular Load, e do rapper Rashid.

Na Quebrada – Quadrinhos de Hip Hop tem na sua maior qualidade o fato de ser um trabalho necessário para a galera. Disseminar essa cultura para o leitor é de suma importância. E tomara que quem venha a ler, passe a se interessar e a consumir as artes que o movimento gera no total. E como disse o meu amigo Gigalovax Cândido, todas as histórias acabam de forma positiva. Apontando que o futuro pode sim ser melhor.

Na Quebrada – Quadrinho de Hip Hop tem formato 17 x 24 cm, 184 páginas e capa em papel cartão. A coletânea está em pré-venda no site oficial da Draco.

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Gideon Falls | A Trinca de Terror, Mistério e Loucura do Celeiro Negro

Quando eu comecei a ler Gideon Falls – Vol. 1 – O Celeiro Negro, eu meio que já esperava o que estava por vir. O material em minhas mãos pulsava em induzir-me para uma trama de mistérios, terror e suspense. Bem, devo dizer que Gideon Falls tem um bocado dessas coisas, e tem outras coisas emboladas. Coisas boas e coisas ruins. O clima que esperamos na publicação é real. Um mistério meio que sufocante criado pelo roteirista Jeff Lemire, vai ditando uma narrativa que assemelha à filmes de suspense ou então a mais nova onda de séries de TV sombrias com o clássico Além da Imaginação. Existem momentos em que você pensa se vale a pena dá uma pausa, ir para uma outra leitura mais leve, ou então continuar. Principalmente se você ler como eu fiz as duas da madrugada. O suspense de Gideon Falls nem é tão aterrorizante assim, mas toda a sua construção, principalmente nos traços do (genial) Andrea Sorrentino, colaboram com o desenvolver de toda a trama.

A trama de Gideon Falls – Vol. 1 – O Celeiro Negro é contada a partir de duas narrativas. A do jovem Norton, ambientada em uma grande cidade, que tem em sua paranoia o Celeiro Negro, ele vive a revirar lixo atrás de artefatos ou pedaços que possam comprovar que não é louco. Ao mesmo tempo ele tem um acompanhamento psiquiátrico da jovem Dr. Xu, que com o passar da trama se vê envolvida na loucura ou possível realidade de Norton. A outra narrativa é do Padre Wilfred. Que chega na pequena cidade de Gideon Falls para substituir o antigo pároco. Wilfred é um sacerdote que tem em sua bagagem um passado nebuloso e desviado da Igreja Católica, e ficar de frente à comunidade cristã da pequena cidade, esquecida pelo mundo, lhe parece mais um castigo do que uma dádiva.

As duas tramas vão se misturando na medida em que o misterioso imóvel fantasmagórico vai fazendo suas aparições e a influência da lenda vai minando cada vez mais a história. A grande sacada de Lemire é criar a dúvida entre as duas tramas, enquanto uma vai apresentando momentos de insanidade, de conto da carochinha, a outra vai nos convencendo que o Celeiro Negro realmente existe.

Norton

O ponto negativo fica para o excesso de clichês que vão conduzindo a história. A própria dupla de protagonistas são clichês clássicos. Um padre que perdeu a fé. Um homem que não se sabe se é louco ou se está falando a verdade. Ainda temos uma psiquiatra que se envolve com o paciente, um velho que investiga o Celeiro Negro e todos o consideram maluco, uma policial emocionalmente envolvida com o mistério do imóvel fantasmagórico e que ao mesmo tempo não acredita nele e uma trama da igreja por trás disso tudo. Até mesmo um grande plot mais perto do final é meio que óbvio, mas pode parecer brincadeira, ele parece ser óbvio de propósito até. Jeff Lemire abusou de tipos que são comuns em diversas outras histórias para serem os condutores de sua trama, mas confesso que “ponto negativo” é algo meio que forte até pode soar como um baita defeito, mas o roteirista escreve muito bem os personagens, e tenta ao máximo tirar todos eles do lugar comum que geralmente são introduzidos. Essa construção do clichê para algo diferenciado se deve muito ao Sorrentino.

Padre Wilfred

Como dito aqui antes, os traços de Andrea Sorrentino são únicos. Eles ditam até as características emocionais e psíquicas dos personagens, como por exemplo Norton. Que sempre está com uma máscara cirúrgica e nunca aparece o seu rosto. O roteiro de Jeff Lemire é bem contado e desenvolvido graças as técnicas que o desenhista usa. A diagramação e os quadros ajudam nos momentos sufocantes da trama, fazendo elevar a expectativa pela próxima página. E ao mesmo tempo, nos momentos de calmaria fazem nossos olhos relaxarem. Vale ressaltar também o fabuloso trabalho de colorização de Dave Stewart. Conhecido pelas cores em Hellboy, Stewart fez das cores personagens à parte. Existem momentos em que estamos acompanhando um devaneio de Norton vendo a sua insanidade cinzenta bem ameno, ou um momento em que o Padre Wilfred está simplesmente conversando em tons pasteis atrativos para os olhos, e ao virar a página no momento de tensão em que o roteiro demanda, um tom vermelho sangue salta para cima do leitor. A colorização é uma das engrenagens que fazem o roteiro funcionar.

Eu não saberia dizer se a história que Jeff Lemire quis contar em Gideon Falls seria possível sem Andrea Sorrentino e o Dave Stewart, acho que o bolo final sem esses ingredientes ficaria sem sabor. Mas a soma dos três, vão conduzindo o leitor pela a história o segurando até o fim, valendo totalmente o investimento. Alguns leitores podem começar a leitura esperando com algo mais hardcore sendo entregue logo de início. Mas não é assim em Gideon Falls. A trama é toda uma construção, com suspense, ora com viés de terror, ora com viés psicológico.

Gideon Falls – Vol.1 – O Celeiro Negro tem formato 26,6 X 17,2 cm, 160 páginas e capa dura. No Brasil, a publicação está sendo pela editora Mino, que recentemente lançou o Volume dois.

 

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Último Assalto | Salve Kevin, santo guerreiro do boxe!

Diz a história que Jorge foi um grande guerreiro do exército romano e que ascendeu muito rapidamente na carreira militar, se tornando, aos 30 anos, guarda pessoal do imperador Diocleciano (r. 284 – 305), em Nicomédia. No ano de 303, o imperador publicou um édito que mandava prender todo soldado romano cristão e todos deveriam oferecer sacrifícios aos deuses romanos. Jorge foi ao encontro de Diocleciano para protestar e perante a corte declarou-se cristão. Depois de tentar fazê-lo desistir da fé oferecendo riquezas, o imperador mandou torturá-lo durante dias, e a cada vez que era levado perante a autoridade máxima, era perguntado para Jorge se renegava sua fé em Jesus e iria adorar os deuses romanos. A cada negativa de Jorge, ele era levado de volta à tortura. Seu martírio ficou famoso entre os romanos, até que Diocleciano, mandou degolar o jovem soldado.

Diz a história de Último Assalto, que Kevin, um jovem afrodescendente que tinha um promissor futuro como lutador de boxe, depois de passar dois anos detido por um crime, tenta voltar a sua vida normal. Precisando cuidar do seu tio doente, trabalhando em um emprego, onde vive sendo humilhado, mas que foi o único que aceitou, e precisando voltar a lutar, mas tendo que correr atrás do tempo perdido nos treinos. E enfrentando a desconfiança, o preconceito e as tentações que a “vida fácil” lhe propõe a todo momento.

Salve Jorge! Salve Kevin!

Escrito por Daniel Esteves e com artes de Alex Rodrigues, Último Assalto fala sobre começar de novo. De ser guerreiro. De resistir a cada soco. De tirar força não se sabe de onde para superar os rounds. De resistir as torturas impostas pela sociedade e suas visões preconceituosas.

O texto de Daniel é preciso e apresenta uma ópera bíblica na vida de Kevin que tende a ser trágica, pelas escolhas ruins que ele sempre tende a fazer. Mesmo sabendo que será o maior prejudicado em todas elas. Mesmo sabendo que será, assim como Jorge, torturado até a morte, Kevin mantém suas convicções para proteger quem ama. E faz assim uma escolha difícil, abrindo mão de diversas pessoas e se rendendo ao “imperador” na HQ, que vem em forma de um empresário obscuro. Mesmo se sentindo combalido, com sua tortura particular e mental, Kevin é um guerreiro, de coração bom e forte. E se mantém firme no que acredita e abraça o seu sonho de forma única. Assim como Jorge a cada dia torturado se abraçava a sua fé. Kevin é cascudo e com várias idas às lonas da vida, ele se levanta e encara a vida. Por mais machucado que possa estar. Por mais sofrimento que esteja passando. A ambientação da trama no boxe não seria mais certeira.

Os desenhos de Alex Rodrigues é um primor que se casa perfeitamente com a trama. É possível vivenciar a academia humilde, que fica debaixo do viaduto em algum lugar no Centro de São Paulo. As artes das lutas no ringue, com seus movimentos, posicionamento dos lutadores, e atmosfera de um lugar underground são transmitidas com louvor para os leitores. Sem contar nas riquezas de detalhes, como um carinha treinando ao fundo, prédios, postes com seus fios, as tatuagens dos personagens, materiais da academia já bem gastos. Tudo é um deleite para se ver e rever.

Obviamente, sendo uma história com o boxe como cenário, as referências estão lá. É possível ver menções a boxeadores brasileiros como Maguila e Éder Jofre. E claro para filmes de boxe. Como uma referência sensacional ao clássico Rocky.

A única coisa que me incomodou, mas foi algo bem mínimo, foram os cortes. Às vezes me passavam a sensação que ficou incompleta a cena. Mas nada que atrapalhasse o prazer de ler Último Assalto, apesar desse ponto, narrativa em si não fica comprometida.

Último Assalto é sobre redenção. De acreditar até o fim. Lutar até às últimas consequências. De ser guerreiro, mesmo que seja sofrido e torturante para atingir os objetivos e no que acredita. Um drama bem atual, que lida com preconceitos, violência, do modo em que as pessoas e o Estado tratam os menos favorecidos e como o outro caminho “fácil” é sedutor. Kevin é um protagonista que você se apega e torce por ele até o fim. Que assim como Jorge, acredita até o fim no que faz, que apesar de sofrer com a escolha, não esmorece e vai até o final. No geral é um dos grandes lançamentos nacionais do ano.

Último Assalto terá formato 20 x 28 cm, 160 páginas P&B, capa colorida e o preço de R$ 35,00. A publicação será da Zapata Edições e ela foi uma das selecionadas pelo ProAC – Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo.

Você pode adquirir Último Assalto clicando AQUI.

 

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Resenha | Todo o amor e coragem por Justin

“O tempo todo estou tentando me defender. Digam o que disserem, o mal do século é a solidão. Cada um de nós imerso em sua própria arrogância. Esperando um pouco de afeição”.
(Esperando por Mim – Legião Urbana)

Saber quem você é e se aceitar como é. Esse é o principal ponto que Justin da quadrinista francesa Gauthier trata na graphic novel lançada pela Editora Nemo aqui no Brasil. No resumo da história, Justine é uma menina, que durante a sua infância começa a sentir, digamos, “incomodada” pelo corpo que tem. Ela então entra em uma jornada para procurar o que lhe deixa feliz, o que lhe satisfaz, mesmo sem entender o que está acontecendo. O que acaba incluindo psicólogos, bullying dos amigos, pressão e decepção dos pais. Mas Justine tem uma característica de ser decidida. Ela tem seus momentos em que a dúvida paira sobre sua cabeça. Mas também tem atitude em diversas ocasiões. E isso é encorajador para diversas pessoas no mesmo caso.

Em uma rápida pesquisa no Google, você pode ver como casos como esse são rotineiros. Pessoas que começam a se incomodar com o próprio corpo como se existisse um grito de socorro dentro delas. Algumas decidem lutar para serem felizes. Outras, por um medo compreensível da sociedade, escondem-se atrás de mentiras e passam a vida assim. Algumas delas chegam até ao suicídio.

“Bobeira é não viver a realidade”. (Malandragem – Cazuza)

A transexualidade é um assunto extremamente polêmico e muito menos discutido do que deveria ser. Talvez por isso, por não entendermos exatamente do que se trata, essa condição seja motivo de tantos casos de preconceito. Transexual é aquela pessoa que nasceu com um determinado sexo, mas não se identifica com ele. E esse sentimento diferente com mudança de comportamento leva a pessoa a procurar tratamentos hormonais e até fazer cirurgias para mudar o corpo. Tratada por muitos como um transtorno, são recomendados acompanhamento psicológicos ou até mesmo com remédios.

Mas onde fica a linha tênue que separa se é transtorno ou apenas um grito pedindo liberdade de uma pessoa?

Gauthier trata disso em Justin. A trama começa na década de 80, quando os sentimentos e as dúvidas começam a aflorar em Justine. Todos os elementos que compõem essa “Ópera da Negação” estão na HQ. A negação dos pais, a negação da sociedade, a negação da família, a negação de profissionais e a negação da própria Justine. Em poucas páginas, a graphic novel, revela e conta sobre como é dolorido e pesado o fardo de tentar se posicionar em um mundo que simplesmente não te aceita. A trama mostra que muitas vezes você será chacoteado, humilhado… mas ao mesmo tempo ela te dá coragem para seguir para o que quer de verdade. E imagina você, amado leitor, que se hoje em dia a transexualidade é ainda um tabu, pense como era em 1983.

Sempre foram casos tratados como “sem-vergonhice”; “ah é falta de um bom homem”, “falta de porrada”, e essas canalhices que todos já escutaram diversas vezes. O tambor de ódio e incompreensão sobre esse assunto e outros semelhares já transbordou há tempos, e ainda mais no momento em que vivemos onde ter ódio parece que ficou na moda. Mas exemplos de publicações como Justin são essenciais para sabermos com tratar essas mazelas e não alimentar o preconceito. Táoquei?

A arte de Justin é simples com traços normais, sendo até mesmo infantis às vezes, mas o que é bom para a graphic novel. O assunto em si é pesado, e os desenhos com as pessoas sendo retratadas como bichinhos dão a leveza necessária para a carregada história. O ponto fraco é que o desenvolvimento é muito rápido pela trama ser curta (se é que isso é um ponto fraco). Às vezes a gente fica pensando “como é que chegou assim, já?” Mas nada que te deixe extremamente confuso com a trama.

“Olhos nos Olhos, quero ver o que você faz. Ao sentir que sem você eu passo bem demais”.  (Olhos nos Olhos – Chico Buarque)

O ponto forte é Justine. Ela é uma protagonista, que de forma simples, você abraça e fala: “estou contigo até o fim”. Ela passa por todo um processo onde ela se deprime, fica decidida no que quer, fica confusa, ela revida o ódio, se apaixona, se descobre sexualmente e se coloca em xeque. Toda essa salada de sentimentos sinceros da protagonista acaba estreitando o caminho dela com o leitor.

O trabalho editorial da Nemo aqui está incrível, o que não é nenhuma novidade se tratando desta editora. A publicação é prazerosa de se ler. O acabamento é de primeira linha como todos os trabalhos da Nemo. Sempre dando esse deleite para o seu leitor.

Justin é uma história que nos faz pensar. Ela traz para a mente aquela velha questão: e se acontecesse comigo? Se por acaso uma pessoa próxima a mim, como por exemplo, um membro da família se descobrisse transexual, como agiria? Você pode ter uma mente aberta, ser sem preconceitos, mas será que diante de um caso tão próximo, você seria como a mãe da Justine? Ou aceitaria de braços e coração abertos? Faça esse exercício.

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A Marcha – John Lewis e Martin Luther King em uma história de luta pela liberdade

“Segregação racial é o impedimento, com base na origem étnica, do usufruto dos direitos disponíveis para todos os membros de determinada sociedade.”

Transportar grandes momentos históricos para as mídias é algo comum e rotineiro. Filmes e livros sempre contam passagens interessantes ocorridas no passado, que entraram para a história, sendo protagonizadas por grandes pessoas. Quando o lendário congressista americano John Lewis teve a ideia de contar a sua saga de vida e luta contra a segregação racial, ele recorreu aos quadrinhos.  E ao se juntar com Andrew Aydin e Nate Powell realizaram um dos trabalhos autobiográficos mais importantes dos últimos anos.  A graphic novel A Marcha – John Lewis e Martin Luther King em uma história de luta pela liberdade – Livro 1.

É interessante saber o porquê Lewis escolheu contar a sua história em forma de quadrinhos. Quando era adolescente, ele se inspirou em uma HQ chamada Martin Luther King and the Montgomery Story, que custava dez centavos na época que foi publicada em 1956. Em diversas oportunidades, o congressista revelou que era como uma “bíblia” para ele e seus amigos ativistas. Como uma ferramenta indispensável para aprender como implementar o ativismo não violento nos protestos.

A Marcha foi lançado originalmente em agosto de 2013 nos Estados Unidos, e é a primeira parte de uma trilogia que foram publicados nos dois anos seguintes.  É um retrato sobre o movimento de direitos civis na América, sob a perspectiva de John Lewis e a influencia exercida sobre ele pelo ícone Martin Luther King. Ao longo da trilogia, vemos a longa jornada de Lewis pelos direitos humanos e civis, seu encontro com Martin Luther King Jr. e a infindável luta pelo fim das políticas de segregação nos EUA.

A publicação se tornou a primeira HQ a ganhar o National Book Award, um dos principais prêmios literários dos Estados Unidos, que geralmente só premia livros. O volume três levou na categoria Literatura Juvenil no ano de 2015. A Editora Nemo publicou aqui no Brasil o primeiro volume. E é dele que vamos falar aqui.

A graphic novel começa com a famosa marcha na Ponte Edmund Pettus, quando 600 manifestantes pacíficos foram atacados por tropas do estado do Alabama sob as ordens do então governador George Wallace. Onde veio ocorrer uma truculenta e violenta ação das autoridades contra os manifestantes. Recomendo assistir o filme Selma.

É bom falar que A Marcha é realmente uma histórias sobre “marchas”.  Esse primeiro volume fala sobre a marcha que foi Lewis sair da sua pequena fazenda no condado de Pike, Alabama, e contra a vontade dos seus pais, que tinham medo das leis opressivas e humilhantes das segregações, foi buscar nos estudos o seu futuro.  Quando acompanhamos a infância de Lewis, percebemos que ele não ficaria nos limites de sua fazenda. Ele fermentou relações com as galinhas da fazenda de seus pais, cuidado deles como pessoas e realizando até pregações religiosas para elas. Lewis eventualmente fazia um “protesto” contra os pais quando esses tinham que matar alguma das galinhas para servir de alimento.

Como dito antes, é uma história sobre marchas. É a marcha de um jovem em direção ao seu futuro inevitável de lutas, a marcha de uma nação em direção a algo maior, a marcha de uma raça para se unirem contra a opressão e a marcha de um grupo de jovens em busca de sua auto-realização. E como a marcha que ele começou quando a justiça considerou inconstitucional parte da segregação racial com que ele tinha que conviver, a vida de Lewis foi direcionada para que pudesse fazer a oportunidade valer a pena.

O texto implantado por John Lewis e Andrew Aydin flui muito bem deixando a leitura cada vez mais prazerosa a cada página, existem momentos de calmaria e bem agradáveis.mas existem momentos em que somos lembrados de como o ser humano pode ser cruel e estúpido. Um dos momentos mais fortes é quando no julgamento do grupo de ativista de Lewis, o advogado de defesa dos jovens tenta expor os seus argumentos ao juiz que simplesmente vira as costas e o ignora em pleno tribunal. Como se ele não estivesse no local.

Outras cenas fortes são as dos “treinamentos contra o ódio”. Era uma espécie de provocação que os membros do grupo de Lewis fazia um com os outros simulando ataques racistas. O intuito era segurar a raiva e agir de forma pacífica. E muitos não conseguiam passar no teste. A questão que logo surgiu para mim foi: “será que eu também conseguiria me segurar sendo afrontado e humilhado? Como eu agiria diante de um ato desse contra mim?” A Marcha desperta isso no leitor o famoso “e se fosse comigo?” 

Durante esse volume, vários momentos de racismo são apresentados, e nos faz pensar o porque as pessoas tem esse tipo de pensamento. E o pior fica quando pensamos: isso está cada vez mais latente.

A segregação racial ainda existe no nosso dia a dia, de vários modos diferentes que estão implantados em nossa sociedade. Mas ultimamente esse discurso de ódio tem se estendido as pessoas de diversas etnias, sexualidade, posição financeira e nacionalidade. O mais grave é que estamos vendo esse discurso crescendo e estamos caminhando direto para ele. Por isso que obras como A Marcha e Jeremias–Pele são importantes. Para lembrarmos que somos todos humanos. Que ainda devemos ter amor pelo próximo dentro de nós.

E com certeza um dos pontos fortes de A Marcha é a sua arte. O desenhista Nate Powell conseguiu captar e passar visualmente todo o roteiro com seu realismo expressionista com umas certas pitadas de estilo noir. O dinamismo atrai, sem esforço, o leitor para a história e prende até o fim. As vezes se pegar olhando os detalhes de cada traço nas páginas, depois de já ter lido, é algo normal pela quantidade de cenas bonitas. A visão de Washington/ DC no começo da graphic novel é uma cena digna de cinema, quando vagamos por uma imagem aérea do sol nascendo e depois caminhamos por uma rua vazia e silenciosa entrando no prédio onde mora Lewis.

A história de John Lewis é contada através de uma narração gentil e uma arte linda, onde parece que somos transportados para aquele momento. Sentimos a calmaria da fazenda, e a angústia da pressão racista da segregação racial que paira no ar. A torcida agora é que a Editora Nemo anuncie a publicação das sequencias.

A Marcha – John Lewis e Martin Luther King em uma história de luta pela liberdade – Livro 1 é uma leitura obrigatória para todos que precisam saber como foram anos difíceis e como podemos mudar o futuro com ações sem violência e com inteligência contra o ódio.

E quem sabe poder presentear aquela pessoa que ainda insiste nesse discurso e poder mudar um pensamento?

 

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Já estamos vivendo a era dos Deuses Americanos “tupiniquins”

Deuses Americanos é uma das obras mais icônicas de Neil Gaiman. Ela é um dos clássicos do autor e é colocada quase no mesmo patamar de sua fase em Sandman. Publicado originalmente como livro em 2001, Deuses Americanos tem no seu currículo o Prêmio Hugo e o Prêmio Nebula, ambos na categoria Melhor Romance, em 2002. De lá pra cá, Gaiman chegou comentar que tem ideias para uma continuação, em 2017 ganhou adaptações para a TV e os quadrinhos.

Eu nunca tive contato com o livro e nem com a série da TV. Os quadrinhos foram lançados nos EUA pela Dark Horse Comics e foi dividida em três arcos: Shadows, My Ainsel e The Moment of the Storm, totalizando 27 edições. Aqui no Brasil, foi a Editora Intrínseca que segurou a responsa de publicar a obra, e vai realizar em três volumes. Em abril desse ano, chegou às livrarias Deuses Americanos – Volume 1 – Sombras, onde temos o ponto de partida das aventuras de Shadow Moon.

A trama, já muito conhecida por todos, fala sobre a guerra entre os deuses tradicionais que estão perdendo espaço para os novos mitos como a internet e os programas de TV, e caindo no esquecimento pelas novas gerações. O próprio Neil Gaiman produziu a adaptação para os quadrinhos, que tem roteiros de P. Craig Russell (que já trabalhou com Gaiman adaptando Coraline e fez os desenhos de Ramadan, publicada em Sandman #50) e desenhos de Scott Hampton.

Uma obra de tanto tempo e tão conceituada, já com inúmeras resenhas, escrever sobre ela, é como chover no molhado. Durante a leitura, minha mente viajou de como a obra se assemelha com a realidade. Como chegamos ao ponto de “endeusar” pessoas ou objetos que ditam a moda hoje em dia.

O fanatismo sempre existiu nas pessoas. Fãs que colecionam tudo, sabem tudo, conhecem tudo, se vestem igual, buscam ter mesmo pensamento, trejeitos e até modo de falar não é novidade. O fato de termos um ídolo, ou alguém que possa nos inspirar, não é todo ruim. É saudável até o ponto em que não perdemos nossa identidade, e a inspiração possa ser construtiva.

Hoje em dia, temos verdadeiras legiões de fãs que colocam em pedestais músicos, Youtubers, jogadores de futebol e políticos. Entretanto, muitos, me arrisco a dizer em sua maioria, são pessoas vazias, com pensamentos mesquinhos, que levantam multidões e introduzem ideais duvidosos no coletivo. Vemos diversos casos desses novos influenciadores/deuses modernos tem atitudes preconceituosas, escandalosas e mesmo assim as legiões de adoradores crescem cada vez mais. E como se deuses raivosos antigos, que punem, mas mesmo assim ainda continuam sendo adorados.

Em Deuses Americanos, os antigos deuses estão “morrendo” porque as novas gerações não pagam mais tributos, preces e não clamam por eles. Eles foram trocados por novos influenciadores modernos. O quadrinho em que a Lucy, do seriado I Love Lucy, fala que a TV é um tipo de Deus, e que as pessoas fazem sacrifícios para ela é a melhor explicação sobre o que está acontecendo. Na real quando as pessoas idolatram um Youtuber que prega algo que seus pais lhe ensinaram como errado, é o mesmo processo. Como por exemplo, um caso recente de um desses astros, que falou que fez sexo sem consentimento da sua namorada. Muitos condenaram a situação, mas existiu quem defendesse o rapaz.

Estamos vendo um novo processo de endeusamento. A moda ditando regras sempre aconteceu, mas a velocidade da informação hoje em dia é incrível. Um jogador de futebol que pinta o cabelo de manhã, de tarde já temos vários jovens fazendo o mesmo e defendendo ferrenhamente nas redes sociais o seu ídolo. O que está mais na moda, até por causa da proximidade das eleições, tem ficado insuportável a quantidade de pessoas defendendo candidatos A ou B. Estamos vendo amizades de anos se transformarem em ódio por causa de candidatos. Mas ninguém se preocupa em compartilhar as ideias e planos para o futuro de seu preferido.

E hoje em dia simplesmente aceitamos o que nos é passado.

Exatamente o que acontece com Shadow em Deuses Americanos. O protagonista não questiona nada que lhe é apresentado. Ele aceita e executa. Não se preocupa nem se instiga com o que está acontecendo ao seu redor, por mais absurda que a situação seja. Ele tem a dor da perda da esposa e pode ter ligado o foda-se. É algo como o pensamento daquele deputado: pior que está não fica.

Quantas vezes já pensamos nisso?

E assim como as informações são rápidas, Deuses Americanos é uma HQ em movimento. Não vemos sempre o mesmo cenário sempre e não conseguimos mensurar o que pode acontecer o que vem a seguir. A narrativa vai contextualizando, renovando, reinventando e apresentando algo novo para o leitor. A batida filosófica que Neil Gaiman implanta é forte, e transborda nas páginas da HQ. Ela não é uma leitura fácil às vezes, detalhes e excesso de diálogos dos personagens prendem mais do que o normal de uma HQ, digamos, comum.  Como eu não li a obra no formato original, acredito que esteja bem adaptado. A impressão que passa é que o carinho com a produção foi prioridade. E que tudo, ou a grande maioria, do que está no livro, foi transportado para a HQ.

Deixo alguns destaques para as pequenas histórias/contos que são espalhadas por Deuses Americanos. Do relacionamento dos humanos com os antigos deuses. Todas são interessantes. E obviamente a arte. As ilustrações que dividem os capítulos são divinas. Os traços são bem realistas, expressivas e alguns momentos assustadores. Mas apesar de buscar um ponto de realidade, o tom caricato dos personagens não se perde. A edição de Deuses Americanos da Intrínseca, ainda conta com 20 páginas de esboços de artes e notas.

Deuses Americanos tem formato 26 x 16,8 cm, 264 páginas e no link da Amazon Brasil abaixo está com 64% de desconto.

 

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Entrespaço | A arte de repensar a nossa vida

“Mas, sinceramente, valeu a pena? Grande merda, passar por anos de estudos, testes, simulações, se você mal tem a chance de apreciar as estrelas. Caras, vocês foderam com tudo espetacularmente.”

Todos nós temos um sonho. Muitos perseguem para realiza-los. Alguns deixam pelo caminho. E quando você finalmente realiza, mas as pessoas o fazem parecer banal, simples como se não fosse nada de mais? Essa é a principal bandeira de Entrespaço de Daniel de Sousa. Transvestida na trama de um Astronauta, a HQ faz você pensar na vida. No que você realizou no que pode realizar, se valeu a pena todo o esforço e se deixamos as influencias de fora diminuir o que você realizou.

Desenhada e escrita por Daniel de Sousa a partir de um conto que o autor fez em 2011, a trama de Entrespaço, tem a Lua como cenário, um Astronauta precisa recuperar um aparelho perdido no velho satélite. O personagem então começa a pensar e refletir sobre como lutou para chegar até ali, sobre a sociedade como um todo, como somos marionetes para algumas pessoas e de como depois de realizarmos nossos sonhos somos simplificados pelas pessoas.

Um dos pontos fortes de Entrespaço é a arte. Quando o Astronauta se vê sozinho refletindo sobre a vida, Daniel usa bem o fator imensidão espacial para demonstrar como nesses momentos estamos sós. Vou dar um exemplo básico: quando você está na sua cama, antes de dormir e pensa na sua vida, naquela oportunidade que perdeu, no que deixou de fazer, ou aquela vitória que teve. É um momento solitário. É um momento em que você está em intimidade com seus pensamentos. Sozinho. Como se estivesse no espaço.

Eu conheci Entrespaço pelo Twitter (podem seguir o autor no @bomdiavermes )quando ainda estava sendo concebida pelo Daniel. O autor vira e mexe postava artes da HQ e era uma coisa mais linda do que a outra. Logo em seguida veio à campanha vitoriosa no Catarse e, finalmente, o grande lançamento durante o FIQ deste ano. Apoiei a campanha mas não tive como ir ao festival, e daqui de casa, lia os relatos de quem já tinha “consumido” Entrespaço. O que só aumentou minha expectativa. E depois que ela chegou, sim, eu me vi como o Astronauta.

A sua saga para chegar ao seu sonho de criança, com intensivos estudos, treinamentos regados a vômitos e giros em maquinas, até chegar no auge de finalmente ir para o espaço realizar uma missão de apenas 30 minutos. Pode se assemelhar ao que nos temos como sonho também. Quantas e quantas vezes você quer realizar algo, planeja, corre atrás, sofre, vence, pensa em desistir, levanta a cabeça, consegue e vence. Mas as pessoas ao seu redor simplesmente lançam um “não fez mais do que sua obrigação”. “Isso é besteira”. “Você deveria arrumar um trabalho de verdade”. “Olha, isso que você faz não é nada demais”. Banalizam o teu sonho. As suas conquistas.

O sonho do Astronauta era estar nas estrelas. Para isso ele dedicou uma vida de estudos e treinamentos. Para chegar finalmente e ir buscar uma peça que ficou perdida na Lua. O modo em que seus superiores tratam a missão que é o auge da vida do Astronauta é o que incomoda. Você chega no seu auge, e as pessoas vão sucateando sua vitória. Por isso a identificação com o personagem fica tão latente.

Mas, Entrespaço, também fala do ligar o f*da-se. Cara, você chegou no seu auge. Realizou o que mais queria. Chegou no resultado depois de tanto tempo de batalha. E aí? Vai deixar por isso mesmo? Vai deixar influências de fora diminuírem ou simplificarem o que foi conquistado? Tem que viver e valorizar o que alcançou. Tem que se orgulhar. Não ser arrogante, mas ser exemplo de quem lutou e conseguiu. O Astronauta não é uma pessoa cheia de si, daquela do tipo “só eu basta”. É um pensador contemporâneo. Que somente resolveu viver o que batalhou para a sua vida.

E você? Vai realizar o que quer para a sua vida? Vai deixar vozes de fora diminuírem o que você faz/fez?

Pense nisso.

Entrespaço tem formato 17 x 26 cm, 36 páginas em P&B com detalhes coloridos e ainda conta com (lindos) extras dos artistas Mario Cau, Eduardo Medeiros, João Pedro Chagas e Fabiano Lima. A HQ é a primeira publicação do Cavernna Comics, e você pode, e deve adquirir seu exemplar na loja online clicando AQUI.

 

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Raul | A história de um golpe misturado com a vida de Rafa

Raul é a gíria para os indivíduos que aplicam golpes envolvendo obtenção fraudulenta de dados bancários e falsificação dos cartões magnéticos.

Entendendo o que significa o nome da graphic novel Raul, a reportagem em quadrinhos, publicada pela Editora Elefante, em seu debute no segmento da nona arte, a gente entende mais sobre a história que será contada na obra. E muito bem contada por Alexandre de Maio.

A trama mescla diversas frentes: uma que conta a origem e evolução até os dias de hoje desse crime silencioso, onde o bandido assalta sem portar uma só arma. Que provoca grandes perturbações aos lesados. Mas também é um relato fiel da criminalidade em geral, da truculência e subornos de alguns policiais, a vida nas regiões carentes, o grito abafado de agonia do sistema presidiário nacional (desde as casas para menores até as grandes prisões), tudo isso seguindo a vida de Rafa.

A história de Rafa é real e tanto o seu nome quanto os dos demais personagens apresentados na HQ, são ficcionais. Alexandre de Maio conta a vida de Rafa desde criança, quando chega a São Paulo, o início ainda jovem no crime, as vezes que foi preso, o poder aquisitivo que o golpe de Raul o deu. Mostrando de como ele chegou a ser um rapper famoso com uma carreira consolidada.

A realidade de um jovem que vê no crime uma forma de crescer na vida, não é novidade em nenhum lugar no mundo. Ainda mais no Brasil onde a divisão entre pobreza e riqueza são absurdamente enormes. A trama já começa com o pé lá embaixo, com a trajetória do jovem Rafa em golpes curtos, antes de entrar no circuito dos cartões, e suas idas e vindas às delegacias. O relacionamento com sua mãe que busca métodos poucos ortodoxos para “convencê-lo” a sair do crime.

Quando Rafa, depois de tantas experiências, resolve seguir no mundo do rap, Alexandre de Maio brinca na sequência. Ele traz a narrativa o protagonista levando uma vida que foi bem sucedida, com sucessos nas rádios, clipes em Youtuber entre os mais assistidos e a balança de manter uma carreira em um mundo tão competitivo como o da música. A dúvida entre seguir como rapper ou retornar a vida do crime é latente nessa fase da HQ e praticamente salta as páginas. Como se afogasse Rafa em um mar revolto.

A arte de Alexandre de Maio é como estar lendo um álbum de Sin City com Frank Miller nos melhores dias. O sombreamento, as páginas escuras e os personagens praticamente sem rostos não atrapalham a leitura e em certos momentos (principalmente os mais tensos, vide todas as cenas das cadeias) são sufocantes, mas só ajuda a passar a realidade do que Rafa estava vivendo no momento.

Alexandre de Maio fez um excelente trabalho investigativo em Raul. Pois além de uma biografia praticamente perfeita, vemos também como um golpe, que as agências bancárias insistem em esconder por causa das publicidades negativas, evolui ao passar dos anos. Fiquei curioso para saber mais coisas sobre outros golpes, que não são badalados pela grande mídia também.

Espero que mais obras de jornalismo em quadrinhos, que é tão comum lá fora, ganhem mais produções aqui no Brasil. Temos um nicho muito bom para explorar de situações que somente em Terras Tupiniquins acontecem. A excelente graphic novel Raul é uma prova disso.

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Resenha | Villains – Queens of Stone Age

“Todo mundo aqui vai dançar!”

No último dia 25/08 foi lançado oficialmente Villains, o novo disco do Queens of Stone Age. O sucessor do incrível …Live Clockwork (2013) chegou depois de uma extensiva campanha nas redes sociais com a massiva divulgação das (belas) artes do álbum por cidades da Europa e dos Estados Unidos.

Uma dessas campanhas um vídeo lançado em 14 de junho na página da banda onde o vocalista e líder Josh Homme é submetido a um teste de polígrafo e a medida que ele vai respondendo as perguntas, as suas mentiras vão confirmando os detalhes sobre o novo trabalho. A última pergunta do teste é: “Você gosta de dançar?”. Homme, com um tom de voz irônico responde: “Sim, eu gosto”, e pisca para a câmera.

Bem, Villains se trata de realmente isso. Dançar.

Com produção de Mark Ronson, famoso por trabalhar com Amy Winehouse, Adele, Bruno Mars, Robbie Williams, Lily Allen, Christina Aguilera entre outros artistas um tanto quanto distantes do estilo do Queen of Stone Age, mas que se tornou um belo casamento. O novo trabalho da banda tem um quê de dançante, remexe  com sonoridades, digamos, vintages, e ao mesmo tempo mantém a banda com um som atual.

As músicas brincam com elementos dos anos 60, 70, 80 e entrega um produto moderno e gostoso de ouvir. Algumas faixas, como “Feet Don’t Fail Me”, são três estilos de músicas diferentes, e que em momentos remetem (sem comparar, é claro) a David Bowie.

Os fãs mais antigos podem sentir falta dos diversos riffs hipnotizantes pesados tradicionais de trabalhos anteriores do grupo. Agora, o fator dominante é o groove, que corre solto durante praticamente todas as músicas de Villains, e diga-se de passagem, fez bem para os caras. A excelente música “Domesticade Animals” é um excelente exemplo de como o groove é importante nesse trabalho. Quando você pega um produtor, que está acostumado a trabalhar com artistas popstars que não são de arriscar muito em suas gravações, e compra a ideia da banda e ainda incrementa o bolo, tem resultados fantásticos.

Pode-se dizer também que a parceria entre Josh Homme com Iggy Pop ano passado (o vocalista produziu o ultimo disco Post Pop Depression) deu frutos. Ele deve ter escutado muitas conversas da lenda do punk com o Bowie durante os dias históricos que passaram em Berlim gravando o iconico The Idiot. Devem ter acentuado o gosto pelo retrô.

Mas não se engane que é um álbum de ode ao passado. As guitarras e o gingado do Queens of Stone Age ainda se encontram lá. “The Evil Has Landed” tem uma pitada de Led Zeppelin com riffs ferozes típicos do DNA da banda.  Já “The Way You Used to Do” traz a rockabilly onde são distribuidos riffs à vontade, dando um ar agitado, dançante e vivo para a canção. Ambas as canções vemos o dedo de Ronson na produção. Apesar da guitarra enfurecida de Troy Van Leeuwen, que sempre está em boa forma, ditar o ritmo e o destacado groove que sai do baixo de Michael Shuman, uma personagem estende a mão e coloca o ouvinte para dançar: a bateria de Jon Theodore. Frenética, enlouquecida e incendiária, o instrumento não soa como o normal e torna as músicas convidativas para “remexer as cadeiras”. O produtor deu uma importância peculiar para ela.

Entre as nove faixas, encontram-se as baladas “Fortress” e “Hideaway”  que dão uma cortada no ritmo de Villains, algo que parece até proposital. Já em “Un-reborn Again” apesar de ser meio cansativa, vale o destaque para o vocal de Homme, que interpreta a canção com variados tons. “Head Like A Haunted House” reencontramos a rockabilly depois de uma possível reformulação, em um riff rápido e mortal. E o encerramento com “Villains of Circunstance”, um tom intimista sobre um poema que fala sobre as coisas improváveis que acontecem na vida. Como o caminho é feito de vitórias e derrotas e nos apresenta diversos vilões das circunstâncias. Ela chega ser melancólica em alguns pontos, e dançante em outros.

Se você, lindo leitor(a), não conhece a carreira do Queens of Stone Age, e pedisse minha singela opinião, eu falaria que Villains não é um bom álbum para começar a ouvir os caras. O disco de estreia Queens of Stone Age (1998), Rated- R (2000), Songs for the Deaf (2002) ou o já citado aqui …Like Clockwork (2013) seriam melhores escolhas. Villains faz mais sentido para quem já conhece a banda e acaba sentindo essa “evolução” musical dançante proposta por eles e bem executada em vários pontos. Mas ao mesmo tempo, os fãs ardorosos da banda irão torcer o nariz para o recente trabalho. Sim, aquele papo de perder a identidade, não serem mais o que eram antes, flertando com o pop… ele nunca morre no rock.

 Mas se o Queens of Stone Age faz um Villains um trabalho marcante e sólido na carreira, e quer colocar a galera para dançar… bem, é melhor os headbangers deixarem o mal humor de lado e começar a se remexerem. E muito.