Anime Cultura Japonesa

“Undead Murder Farce”: Mistérios sobrenaturais feitos do jeito certo

Escrito por Vini Leonardi

Você pode dizer várias coisas sobre o anime de hoje (e eu vou, inclusive), mas uma coisa não dá pra falar: Que Undead Murder Farce faz propaganda enganosa. O show realmente tem mortos-vivos, assassinatos e farsas, fazendo jus ao nome. Mas, felizmente, o negócio é muito mais do que apenas isso.

Baseado em uma novel de mesmo nome, com autoria de Yugo Aosaki, “Undead Murder Farce” é um animê recém-concluído com 13 episódios. Produzido pelo estúdio Lapin Track e dirigido por Mamoru Hatakeyama (que também trabalhou, entre outros títulos, em “Kaguya-sama“). A sinopse e o trailer seguem, conforme disponibilizados pela Crunchyroll:

O século XIX. Um mundo habitado por vampiros, golems, lobisomens e outras criaturas sobrenaturais. Beleza imortal e cabeça decepada Aya Rindo, junto com o meio-humano/meio-demônio “Matador de Demônios” Tsugaru Shunichi e sua leal empregada Shizuku Hasei, viaja pela Europa como a detetive sobrenatural “A Usuária da Gaiola”, resolvendo mistérios paranormais enquanto ela procura por seu corpo perdido.

Para começar, temos que discutir o gênero “detetivesco“: O que faz com que obras de mistério sejam divertidas para o público? Isso é uma pergunta bastante pessoal e que cada um terá uma resposta diferente, mas acredito que existe um ponto em comum em todas elas, que é o fato de você “ser capaz de chegar na conclusão correta com base nas informações que foram fornecidas“.

O que faz com que livros da Agatha Christie sejam sucessos até hoje? Bem, além da fama pré-estabelecida que a impulsiona, essa fama foi criada por sua qualidade: Os mistérios em seus livros requerem muito pensamento analítico, mas eles podem ser resolvidos com o que te contaram. Não há sensação pior do que acompanhar toda a investigação, para a solução vir de alguma coisa não contada, literalmente tirada da cartola no último segundo.

E é nesse ponto que muitos mistérios “sobrenaturais” pecam. Quando saímos da realidade e entramos num mundo fantasioso, as leis que regem a lógica e o bom senso são alteradas. O espectador não pode mais usar apenas a sua linha de raciocínio, e depende ainda mais da obra te dando os detalhes necessários para chegar na verdade. E, putz, tem muita obra por aí que decepciona nesse quesito. Olhando para você, Tanmoshi.

Em “Undead Murder Farce”, porém, eles conseguem atingir o equilíbrio entre exposição e sutileza. Ao ter um “monstro especialista em monstros” como a detetive do caso, as longas e muitas vezes desnecessárias (no universo) explicações de como monstros funcionam entram de forma natural na narrativa. Explicar para um vampiro como a regeneração de um vampiro funciona parece inútil, mas é necessário para o espectador. E fazer isso através de uma dedução de detetive, que sempre parte do óbvio para chegar num novo ponto, é uma das melhores formas de fazê-lo.

Captura de tela do episódio 12 de "Undead Murder Farce", mostrando Aya

Toda a investigação que leva à verdade é sempre um papo-cabeça. Hã? Entendeu?? Há! (Reprodução: Crunchyroll)

Com três grandes arcos na temporada, temos três casos tão diversos quanto o elenco da série: Um assassinato de uma vampira de família nobre; um roubo de uma jóia de dentro de uma mansão extremamente vigiada; e uma série de assassinatos misteriosos numa vila isolada. As resoluções são difíceis, mas não impossíveis, e a satisfação do final do arco é ampliada pelo uso de todos os detalhes fantasiosos que nos foram apresentados ao longo dos episódios.

Falando no elenco, o animê reúne figuras históricas e da ficção do século 19 em uma junção que eu cheguei a chamar carinhosamente de “A Liga Extraordinária, versão otaku“. Ou, se preferir um exemplo mais superficial, “Os Vingadores do século 19, versão otaku”.
Sem entregar tudo e ser xingado por spoilar demais, apenas alguns nomes: Sherlock Holmes e James Moriarty; O Fantasma da Ópera; Phileas Fogg e Passepartout… A lista segue, com referências divertidas e interessantes às obras originais, e interações que só poderiam acontecer em colaborações desse estilo.

Junto com os figurões já conhecidos, temos também alguns personagens originais. E eu queria destacar os dois protagonistas: A imortal Aya Rindo, e o “Matador de Demônios” Tsugaru Shunichi. Além de serem extremamente carismáticas e transbordarem personalidade, o jeito como eles interagem entre si é uma recompensa por si só. Mesmo estando ambos em situações precárias, numa busca por vingança que inevitavelmente os levarão à morte (ou, talvez, justamente por estarem nessa situação), eles conseguem brincar, contar piadas e fazer jogos de palavras um com o outro, sempre mantendo a atmosfera ao redor do elenco num alto astral. E esse “alívio cômico”, digamos assim, ajuda o clima da obra a se manter bem mais neutro do que os temas e acontecimentos poderiam sugerir.

Captura de tela do episódio 9 de "Undead Murder Farce", mostrando Tsugaru

O jeito como o Tsugaru é basicamente um shitpost ambulante realmente ajuda o animê (Reprodução: Crunchyroll)

E mesmo quando o animê se debruça mais na ação e se afasta dos jogos mentais e deduções detetivescas, ele ainda dá um show. A coreografia e animação das lutas é sensacional, com os golpes inusitados e manobras inesperadas de Tsugaru sempre me deixando de queixo caído (como exemplificado pela abertura, que, aliás, é um banger). Não apenas bonitas, as sequências se esforçam para parecerem maneiras, dando aquele ar de massavéio que cativa os olhos e te prende na tela.

Por fim, embora não seja uma temática que está na superfície da obra o tempo inteiro, ainda podemos fazer uma leitura interessante sobre a interação entre os humanos e os “monstros“. Claro, a ideia é mais antiga que andar pra frente, mas o conceito de humanizar os monstros e demonizar os humanos é algo que pode ser lido nas entrelinhas do animê. Eu acho essa leitura um pouco simplista demais, porém, e entendo a situação do mundo e a mensagem como algo mais primalístico: No fim das contas, seja humano ou monstro, todo ser vivo se esforça, em certos momentos quase instintivamente, para sobreviver. E numa situação onde você foi colocado com as costas contra a parede, quem poderia te julgar pelo que fez para salvar a própria pele?

Em resumo, “Undead Murder Farce” funciona como história de detetive mesmo com seus elementos sobrenaturais; funciona como animê de porradinha com lutinhas iradas; e funciona como uma “releitura nipônica” do clássico de Alan Moore e Kevin O’Neill. Um dos melhores shows do ano até agora, o redator dá uma merecidíssima nota de 4,5/5,0.

“Undead Murder Farce” está disponível na plataforma de streaming Crunchyroll, com legendas em português.

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Sobre o Autor

Vini Leonardi

Cavaquinho na roda de pagode da Torre. Químico de formação, blogueirinho por diversão e piadista de vocação. "Acredito que animês são a mídia perfeita para a comédia, e qualquer tentativa de fazer um show sério é um sacrilégio", respondeu ao ser questionado sobre o motivo de nunca ter visto Evangelion.

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