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Sobrevoando a Carniça | Batemos um papo com Marcel Bartholo e Rodrigo Ramos

Escrito por Ricardo Ramos

Lá pelos idos de 2017, surgia no quadrinho nacional Carniça. A HQ nasceu na parceria do roteirista Rodrigo Ramos e o desenhista Marcel Bartholo, tornando-se um sucesso e criando o embrião do selo independente Carniça Quadrinhos. Onde, em 2018, foi publicado Lama, confira nossa resenha AQUI. A terceira publicação desse “casamento” será agora no final do ano  com Canil. Na nova HQ vai levar o leitor ao presídio de Guarás. Um verdadeiro lugar de terror e morte onde a sociedade descarta aqueles que ela já esqueceu.

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Rodrigo Ramos é autor, roteirista, jornalista especializado em quadrinhos de terror, crítico e autor de Medo de Palhaço. Enquanto Marcel Bartholo é ilustrador, quadrinista, artista plástico, sócio fundador do Estúdio Ideaboa e vocalista da banda Efeito Imoral. Batemos um papo com a dupla e falamos sobre Canil, o selo Carniça Quadrinhos, Antologia VHS, projetos futuros, política nos quadrinhos e de uma possível “Cachaça Carniça”.

1 – Canil está chegando em dezembro, o que podemos esperar dessa  história e qual foi a maior inspiração para ela?

Rodrigo: Com a boa recepção que tivemos de Carniça e Lama, a ideia de lançar um título por ano foi devidamente sedimentada com a criação do selo Carniça Quadrinhos. Canil traz uma mistura de origens e referências. Primeiro, é a ideia de contar uma história sobre um dos meus monstros preferidos – que vai ficar em segredo pra não dar spoiler –  e dar o fechamento pra uma trilogia meio conceitual que acabou tomando forma conforme trabalhávamos em cada HQ. Cada um destes nossos três primeiros trabalhos traz um aspecto diferente do homem e lida com a desumanização a partir destes aspectos. Isso ficará bem claro quando virem as três capas em conjunto. Carniça falava da alma, Lama da mente e Canil tratará do corpo. Portanto espere algo bem gráfico e violento.

Marcel: O embrião de Canil surgiu juntamente com os primeiros esboços conceituais de Lama. Na época preferimos deixar o projeto para 2019 mesmo, uma ideia mais simples, raiva e confinamento.

2 – Podemos esperar o já tradicional terror com aquela ponta de crítica social, presente em Carniça e Lama, em Canil também?

Rodrigo: Sempre! Mas enquanto em Lama isso era muito mais presente, pois falava do Brasil assustador que surgiu no período das Eleições passadas, Canil será uma história mais direta. Tem uma mensagem ali, mas ela não conduz a história, ela só contextualiza e dá camadas de interpretações caso o leitor queira mergulhar no nosso universo. Caso contrário, será só uma boa e violenta história de terror como deve ser.

Marcel: O que mais me atrai em nossa empreitada carniceira é contar boas histórias de terror brasileiras. Histórias que possam de alguma maneira dialogar universalmente, mas mostrando nossa cultura. Não tem como falar de Brasil, sem uma visão crítica, e o gênero do terror é sempre crítico, seja por metáforas alegóricas, ou sátiras divertidas. Temos uma gama enorme de possibilidades para o futuro.

3 – Os quadrinhos sempre serviram para passar mensagens. Seja o estilo que ele for. Nas publicações da Carniça Quadrinhos, temos visto isso acontecer. É algo pensado, do tipo: “precisamos nos expressar” ou é algo que com o desenvolver da história acaba acontecendo naturalmente?

Rodrigo: Como fã e pesquisador do horror no cinema e nos quadrinhos, esse tipo de história sempre me atraiu mais que as outras. George Romero, John Carpenter e Wes Craven sempre fizeram um terror que tinha algo mais a dizer além de contar uma história assustadora. Os zumbis de Romero e Eles Vivem! do Carpenter são talvez as obras mais emblemáticas neste sentido. Eu não acredito em uma obra apolítica. Toda forma de expressão é politizada e isso não quer dizer que você está apoiando este ou aquele partido, mas sim que toda obra traz um pouco do seu contexto e um traço do seu tempo. É impossível se expressar sem colocar um pouco do que você pensa para fora. É deste tipo de política que estou falando. Em Carniça o contexto social estava ali apenas para desencadear a história que eu queria contar, mas em Lama, aí sim eu realmente queria falar algo além da história. Canil está mais próximo de Carniça neste sentido.

Marcel: Eu acho que a mensagem, o discurso por trás de uma história não pode ser desequilibrado com o ato de contar a história em si. Todo artista se expressa com a sua carga cultural e sua visão crítica do mundo. Acho que estamos com uma boa sintonia, na arte das Hqs eu busco trazer soluções diferentes a cada história, novas influências ,inspirações e técnicas que na minha visão combinem com o roteiro.

4 – Todas as publicações da Carniça Quadrinhos foram de vocês dois.  Existe algum planejamento de lançar algo de outros artistas (claro desde que fique no âmbito do selo)?

Rodrigo: Inicialmente estamos trabalhando como uma dupla, mas nada impede que isso possa se expandir no futuro, talvez com obras individuais ou outras mídias, mas ainda é cedo para falarmos nisso.

Marcel: Pois é, sinceramente ainda não falamos sobre isso. Estamos no começo, acho que o trabalho como dupla ainda pode ganhar uma consistência cada vez maior. Virtualmente nada impede que possamos agregar novas ideias no futuro. Um passo de cada vez.

5 – Como funciona o processo de criação da dupla? Vocês se encontram, um chega a dar pitaco no trabalho do outro e tal?

Rodrigo: Nosso processo de criação é mais simples do que eu gostaria. Eu tenho uma ideia, discutimos em conjunto, o Marcel dá suas sugestões e, se ambos concordarmos, passamos para o roteiro. Quando a arte começa, ele vai me mandando os esboços e vamos reconfigurando e ajustando o que for necessário. Às vezes nos falamos online, mas o processo todo demanda cada vez menos ajustes. São as vantagens de uma parceria de três anos.

Marcel: O processo é simples, chegamos no conceito e ideia juntos… Rodrigo escreve o resumo do roteiro e eu vou pesquisando as minhas referências e técnicas que acredito ilustrar melhor a ideia. Com o roteiro escrito, durante a fase de esboços vamos diagramando melhor página a página. Temos uma dinâmica tranquila.

6 – Com o Brasil do jeito que está, com lideranças duvidosas, casos e ameaças de censura, é um prato cheio para uma HQ de terror. Mas também acredito que devemos alertar e tentar falar abertamente sobre isso.  Caberia isso em alguma publicação da Carniça Quadrinhos?

Rodrigo: Este é um problema com o debate político atual no Brasil. Ser oposição ao governo não é ser a favor deste ou daquele governante. O povo tem sempre que fazer oposição ao governo. De maneira coerente e racional. Questionar e fazer valer o seu voto não é “torcer contra”, mas garantir que as coisas caminhem como o país precisa. As pessoas hoje estão muito passionais quando se trata deste tema e isso acaba podando alguns artistas que ficam com receio de se posicionar. Mas desde que a história não seja panfletária e não deixe o discurso falar mais alto, não vejo problema. O discurso pode te fazer perder este ou aquele leitor, mas uma boa história vai manter todo mundo atento ao seu trabalho. Este é o segredo. A partir daí, qualquer tema cabe em nossos quadrinhos.

Marcel: O Brasil é uma fonte inesgotável de decepções, um abismo que nunca chega, como diria o querido Fausto Fawcett. Eu particularmente sempre me posicionei criticamente a TODOS os governos que tivemos, e sigo assim. Política não é torcida de futebol. Com o mar de ignorância e cegueira ideológica avançando, o diálogo vai se embrutecendo. Eu sou um otimista relutante…vivo no meu mundinho, fazendo o que posso e está ao meu alcance.
Tudo pode e deve ser refletido na produção artística…sigamos em frente.

7 – Indo para outros trampos agora… Recentemente foi lançada a  campanha no Catarse da antologia VHS. O Rodrigo é um dos cabeças, junto com o Fernando Barone, e ainda escreve a  história “A Nova Ordem”.  Fale um pouco sobre o projeto e sobre a história Rodrigo.

Rodrigo:  A ideia surgiu há algum tempo atrás quando falávamos sobre criar um coletivo de horror em quadrinhos pra publicar histórias inéditas anualmente. Durante a CCXP no ano passado muitos dos autores de horror acabaram ficando bem próximos no que acabamos chamando entre nós de “beco do horror” e a ideia foi tomando forma aí. O Barone tem experiência como editor e topou embarcar nessa pra tirar esse projeto do papel. Abrimos uma espécie de “processo seletivo” e recebemos muitas histórias boas de muita gente com quem sempre quis trabalhar o que acabou resultando em uma coletânea de mais de 280 páginas! O resultado está muito bom e espero realmente que a campanha dê certo, pois a VHS merece ser lida!

A Nova Ordem, minha HQ que faz parte da coletânea é ilustrada pelo incrível Leopoldo Anjo, que trouxe exatamente a pegada oitentista que eu queria pra história. Aqui vemos um casal de heróis, Marreta e Ceifador, em direção a uma base alienígena de onde uma série de ordens mentais são enviadas para dominar a humanidade. É uma mistura de Eles Vivem!, Fuga de Nova Iorque e Thundercats. Coloquei de tudo um pouco das minhas referências adquiridas durante milhares de horas em frente à TV nos anos 80, além de, é claro, trazer a aventura pro nosso contexto atual. Se eu falar mais, vai estragar as surpresas, afinal é uma história curta.

8 – O Marcel também está em VHS, você fez a arte de “Controle de  Pragas Abençoado” que tem roteiro do estreante Hedjan Costa. Poderia falar um pouco sobre a história?

Marcel: Conheci o trabalho do Hedjan na antologia de contos de Terror “Narrativas do Medo vol 2”, onde fiz todas as ilustrações . Achei muito bacana ele se aventurar a também escrever quadrinhos. “Controle de Pragas Abençoado” é uma história que me divertiu muito trabalhar. Ela aborda o tema do machismo com toda uma estética “TRASH”. Acompanharemos  a dedetizadora Ângela em mais um dia normal de trabalho…rarararara. Não posso contar muita coisa, mas posso dizer quais foram algumas das minhas influências nessa Hq… Evil Dead, Ratos de Porão,Caça-Fantasmas,Tartarugas Ninja…rararara . VHS está MUITO bacana mesmo!

Arte de Canil

9 – Em termos de influências para escrever e desenhar, quais foram as maiores para vocês?

Rodrigo: Talvez minha principal influência seja meu já falecido tio-avô que me apresentou ao mundo das lendas e mitos do nosso folclore. Passei muitas horas em claro depois de ouvir suas histórias da época em que minha família morava na zona rural no interior. Também tenho muita influencia do j-horror e de Junji Ito, do body horror do David Cronenberg e do cinema crítico do John Carpenter. Os quadrinhos da EC Comics, os contos Edgar Allan Poe e Nelson Rodrigues e as músicas de Trent Reznor (Nine Inch Nails) e Maynard James Keenan (Tool) também acabam no meu balaio de referências e inspirações.

Marcel: É importante o artista beber em diversas fontes para ir sedimentando sua identidade. Apesar de trabalhar com Hqs há pouco tempo, tenho uma carga de experiência com pintura, ilustração, caricaturas e tudo acaba refletindo no meu trabalho de alguma forma. Vou tentar citar algumas das influências para meu trabalho. Na pintura, Cândido Portinari, Van Gogh, Goya e Bosch. Nas Hqs, Richard Corben, Flávio Colin, Júlio Shimamoto, Mutarelli, Walter Simonson. Na literatura, H.G Wells, Ray Bradbury, Monteiro Lobato, Dostoievski. 

10 – A Carniça Quadrinhos é bem querida por todos. Pela qualidade nas publicações e em suas histórias. Teremos alguns produtos relacionados às publicações? Como camisas, adesivos ou quem sabe até mesmo uma bebida alcoólica? Uma pimenta ia combinar legal…

Rodrigo: Já chegamos a conversar sobre isso. Estamos pensando em criar produtos que possam reforçar a marca e também recompensar nossos leitores que sempre nos acompanham. A ideia da camiseta e do boné já passou pela nossa cabeça, com o perdão do trocadilho, mas a ideia da bebida seria uma boa. Quem sabe um “Marafo Carniça” como a clássica cachaça que trazia o querido Zé do Caixão no rótulo? Alô fabricantes de pinga!

Marcel: Pois é, estamos ainda devendo nessa questão…mas são ideias que já conversamos e precisamos botar em prática. Em breve…quem sabe…

11 – Além de VHS e Canil, quais os próximos projetos de vocês?

Rodrigo: Para este ano, além destas duas HQs, também terei uma história minha publicada em Astrum Argentum de Aleister Crowley, da Draco, ao lado do grande artista e amigo Samuel Sajo. Para o ano que vem, além de mais um título do Carniça Quadrinhos, tenho planos de expandir o universo de Marreta e Ceifador com um álbum solo da dupla, novamente ao lado do Leopoldo Anjo, mas o projeto ainda está em fase de discussão sem data para lançamento.  E, se tudo der certo, quem sabe um segundo volume de VHS não pinta no Catarse ano que vem?

Marcel: Em 2019 já lancei a Hq “A Necromante” no primeiro semestre, agora em dezembro será lançada “Orixás” do roteirista Alex Mir, onde sou um dos desenhistas participantes, além das já citadas VHS e Canil. Para 2020 embarcarei na produção do álbum “João Verdura e o Diabo” do roteirista Lillo Parra (La Dansarina) , e faremos mais uma publicação pelo Carniça Quadrinhos que já está sendo definida conceitualmente. Tentarei participar de mais um volume da VHS, ou outras publicações de histórias curtas. Para 2021 quem sabe consigo lançar minha primeira HQ ,fazendo roteiro e arte. Muito café e trabalho por aqui….

 

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Sobre o Autor

Ricardo Ramos

Gibizeiro, escritor, jogador de games, cervejeiro, rockêro e pai da Melissa.

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