Em 1986 Alan Moore estava lançando nos Estados Unidos sua obra seminal Watchmen. Poucos anos antes, o mago inglês criava sua fagulha inicial da ideia que viria a se tornar a já citada série da DC Comics enquanto escrevia Miracleman (na época ainda chamado de Marvelman). Em 1987, motivado pelo sucesso dos super-heróis sérios da época, Grant Morrison criou sua resposta a Watchmen através de Zenith, que viria a utilizar conceitos similares aos das obras de Moore com um estilo muito mais fantasioso e divertido, pegada típica do autor quando trabalha com super-heróis. Sem deixar de lado, é claro, o caráter louco que tornou-se marca registrada do escocês.
Após uma série de histórias curtas dos Choques Futuristas, e tendo trabalhado na série Zoids pouco tempo antes, Morrison estava finalmente criando sua primeira aventura mais longa. Esta série, que teve início na prog 535 da 2000 AD (em agosto de 1987), conta com arte de Steve Yeowell e designs originais de Brendan McCarthy, e já era uma amostra dos roteiros megalomaníacos de Morrison que iriam se estender para suas outras histórias no futuro. Nela, Zenith é o personagem principal, e o único descendente de uma geração de superseres desenvolvidos pelo governo britânico após/durante a 2ª Guerra Mundial.
Ao invés de usar seus poderes (voar, resistência, força) para o bem da sociedade, o protagonista se aproveita do título de único super-herói em atividade para seguir carreira como pop star, até que se encontra envolvido em um confronto contra um ser de outra dimensão, que toma posse do corpo de um meta-humano nazista revivido por cientistas loucos para servir como receptáculo de uma entidade lovecraftiana.
Apesar de toda a bizarrice descrita acima, esta série – pelo menos as duas primeiras fases, compiladas no encadernado Zenith – Volume Um da Mythos Editora – é de fácil compreensão, sem muita complexidade no roteiro. Mesmo sendo descrita como a primeira de super-heróis da 2000 AD, o personagem que dá o nome à história não é nada heroico, e os coadjuvantes são mais interessantes e possuem melhores personalidades do que ele. O grupo Nuvem 9 (que se assemelha aos Minutemen de Watchmen), composto por heróis como Voltagem, Dragão Rubro e Mandala, marcou o retorno de uma Era Heróica após a Segunda Guerra, onde Maximan e Masterman (a contraparte nazista do herói britânico) lutaram e foram eliminados em um teste de bomba nuclear na cidade de Berlim.
Morrison brinca com a história real da existência dos super-heróis ao longo da Fase Um de Zenith. Ao situar o início da Era Heróica como o período da Guerra, o autor cria um paralelo com a realidade, onde os heróis surgiram na década de 30 e tornaram-se um hit durante o conflito, caindo num período de esquecimento em seguida (durante os anos 50) e sendo revividos na década de 60. A trajetória é muito parecida no mundo real e no mundo fictício de Zenith, onde com maestria a dupla criativa responsável pela série costura muitas tramas paralelas e cria uma cronologia única e muito bem estabelecida. Ao invés de Hiroshima, temos Berlim. Maximan é uma espécie de Superman britânico. E sobra ironia até para Fredric Wertham, o psiquiatra autor da Sedução dos Inocentes.
Como diz em seu livro Superdeuses, Morrison utiliza a série para, pela primeira vez, transportar-se para os quadrinhos. Anos mais tarde, o autor faria algo parecido com o King Mob da série Os Invisíveis, e de forma literal no encontro das páginas do Homem-Animal. Na persona de Zenith o autor insere todas as suas características mentais (e algumas físicas) da época, transportando sua personalidade para o protagonista da série. Ao fazer isto, cria também personalidades fantásticas que vieram a se tornar verdadeiras celebridades dos quadrinhos britânicos, como o já citado Peter St. John, o Mandala (um tipo de Doutor Manhattan de Zenith), e rega suas páginas com muitas referências da cultura pop da época, criando um apelo adicional único sem pesar a mão nas alusões literárias.
Enquanto Watchmen é uma espécie de literatura séria e rebuscada, Zenith foi criado como um escapismo jovial puro e simples. A arte de Steve Yeowell é um mangá ocidental de alto contraste, onde os designs de Brendan McCarthy criam vida com fluidez e simplicidade extremamente agradáveis.
Durante toda a introdutória Fase Um, a dupla criativa Morrison & Yeowell trabalha para estabelecer as características primordiais da série, como a existência dos Multiângulos e dos heróis, para descambar na Fase Dois onde são explorados alguns detalhes do passado de Zenith, da existência dos Lloigor e o conceito do Multiverso, aqui apelidado de Alterna. A utilização de Terras Paralelas rendeu para a série a alcunha de “Crise nas Infinitas Terras dos quadrinhos britânicos.”
A edição de luxo nacional da Mythos Editora compila as Fases Um e Dois na íntegra, com seus interlúdios e extras. Apesar de não ser um material inédito no Brasil, por já ter sido publicado em meados dos anos 2000 pela extinta Pandora Books, é a primeira vez que a série chega ao país de forma oficial em seu formato original, sem cortes e com nova tradução pelas mãos do gabaritado Érico Assis. E o tratamento gráfico dado ao encadernado é primoroso.
Talvez o Grant Morrison de Zenith seja mais acessível para os leitores que gostam de séries descompromissadas e com uma dose de nonsense divertido e empolgante, coisa que o autor extrapolou em suas histórias para a DC e Marvel e também nas continuações desta própria publicação. E deixando um gancho para as continuações, encarnadas nas Fases Três e Quatro (esta última inédita no Brasil, totalmente colorida e sendo publicada em breve pela Mythos), a empolgante história do cantor Zenith e todos que o cercam parece estar apenas começando, de uma forma tão excelente que nem parece o início da carreira de um roteirista, provando sua genialidade desde cedo.
Zenith – Volume Um possui 212 páginas encadernadas em capa dura no formato 26 x 19 cm, com preço de capa sugerido R$ 74,90.