Quadrinhos

A Cidade Pequenina que se agiganta

Escrito por Marcus Santana

Casinhas amontoadas uma ao lado da outra, cadeiras para fora no intuito de observar o movimento da rua, janelas abertas à vista dos olhos de curiosos, brigas de casal que rapidamente viram o assunto favorito da última fofoca municipal, ruas pintadas para eventos esportivos e comemorações religiosas, quermesses com pratos típicos e seus jogos fraudulentos, comprar fiado na mercearia mais próxima, morrer de tédio em dias que se arrastam sem nada para fazer… nascer e crescer em cidades do interior, principalmente as sem conturbação situadas nas entranhas do Brasil dá aos seus habitantes uma visão totalmente diferente do que é o  nosso país. Em mais um título original da editora Pipoca & Nanquim e novamente bem apadrinhado por um prefácio escrito por Robert Crumb, Camilo Solano retorna à colaboração com seu irmão Aldo para compartilhar com seus leitores como foi e é a vida interiorana em que foram inseridos desde os seus primeiros dias de vida e que, entre idas e vindas pelo território nacional, se estende até os dias atuais.

IMAGEM: divulgação Amazon.com.br

Em um olhar distante, São Manuel seria apenas mais um dos 87% municípios do Brasil com menos de 50 mil pessoas residentes, fazendo à priori o antonomásico título da publicação não ser por acaso, mas graças a cada história contada de forma independente em seus capítulos, o pequenino cresce e traga quem as lê para uma identificação bem próxima aos causos apresentados: toda cidade tem alguém nascido lá que se torna famoso ao ambiente exterior, o velho rabugento e encrenqueiro, a fofoqueira, a rádio local e muitas vezes comunitária, a cultura do imigrante que resiste por gerações e etc. Porém, a forma única escolhida pelos dois irmãos de narrar suas histórias destaca São Manuel no mapa de uma forma que não se esperava para cidades em que, na maioria dos casos, é muito mais difícil ter acesso a uma boa variedade de histórias em quadrinhos, justamente a mídia que agora coloca seu município em evidência.

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Assim como em O Cortiço, representação máxima do naturalismo de Aluísio Azevedo, Cidade Pequenina demonstra que não é necessário um personagem principal para tocar uma obra. Aqui, o cenário é o mais importante, e não os seres que o rodeiam, fazendo assim cada componente ter a sensação de pertencer a uma távola redonda, onde cada um possui a mesma importância na história.

Ainda no campo literário, cada um dos 19 capítulos pode ser lido em qualquer ordem que o leitor desejar: não há continuidade e a experiência primordial não será quebrada, coincidentemente como foi a ideia de Graciliano Ramos para Vidas Secas, outra obra interiorana. Causos que facilmente cairiam no esquecimento, cenários que passam batido aos olhos menos atentos e pessoas “conhecidas” que “ninguém sabe quem são” brotam com tremenda facilidade na colaboração familiar dos dois irmãos quadrinistas.

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Dentre histórias com número variado páginas, destacam-se as aventuras inseridas em Butina, O Caminhão de Banha, Viva o Delton, Aniversariante do Dia, Vandi e a já clássica A História da Bolachinha preta, em que os próprios autores assumem o papel de personagens e investigam um mistério envolvendo a estranha relação de um célebre artista local com um longa-metragem estrelado por Jerry Lewis.

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Apesar de ser uma publicação inédita, todos esses capítulos fazem o leitor puxar da memória algum caso conhecido em seu particular que lembra as mesmas situações. O desconhecido é muito mais conhecido do que aparenta ser. A colaboração familiar conta com a maioria dos capítulos desenhados por Camilo, mas que curiosamente já não é de hoje: ambos já haviam produzido a quatro mãos Badida, publicado de forma independente em abril de 2017 e que conta com o protagonismo do personagem homônimo reprisado no já mencionado capítulo Aniversariante do Dia.

Cidade Pequenina recupera a boa prosa do cotidiano tão característica de Camilo que, desconsiderando sua recente Graphic MSP, teve uma pouco compreensível experiência narrativa em O Fio do Vento. Hoje desenvolvendo de forma cada vez mais expressiva seu traço em aquarela, Camilo mostra que suas cores digitais também expressam muito bem o que tem a dizer, desempenhando sua arte de forma satisfatória.

Não há como não se apegar à nostálgica ideia proposta em Cidade Pequenina. Mesmo quem viveu e vive desde sempre em grandes cidades se entrega à vida simples e suburbana oferecida aqui pelos irmãos Solano. Pegue uma cadeira ou ponha uma rede na varanda de casa, sinta o vento soprando dos montes ao longe que cercam sua residência e aproveite o que o Brasil de fato é.

Cidade Pequenina
Camilo e Aldo Solano (roteiro e arte)
Pipoca e Nanquim
Capa dura
252 páginas
29 x 22 cm
R$89,90
Data de publicação: 10/2021

 

 

 

 

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Sobre o Autor

Marcus Santana

O que seria de nós sem quadrinhos?

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