Quadrinhos

O órfão de dois pais

Escrito por Marcus Santana

É triste dizer, mas em paz não existiriam heróis. A figura do herói, que vem de ἥρως (heros: Protetor, em grego) surge somente perante um momento crítico. Na vida real ou ficção, tendemos a torcer pelo herói, o protagonista de uma situação dramática que esperemos que acabe bem. O herói de um pode ser o vilão de outro e por isso vemos tantos heróis surgindo após tragédias pessoais.

Quem nunca ouviu falar do Homem-Morcego? É um clichê absurdo já há mais de meio século afirmar que Batman, o Cavaleiro das Trevas e alter ego de Bruce Wayne, é um fenômeno cultural. Pudera: sem contar as diversas HQs que a cada mês são publicadas no mundo inteiro (sendo atualmente sete títulos mensais ligados ao Batverso disponíveis em seu país de origem), o cidadão de Gotham City que se tornou órfão ainda jovem possui 39 jogos de videogame; 12 filmes de longa-metragem em formato live-action (marca registrada no Guinness, o livro dos recordes), sendo 10 desses como único protagonista e mais 38 filmes em animação; Séries de TV que transformou quem o representasse em celebridades instantâneas, com legados intactos mesmo após sua morte; Diversos licenciamentos como cadernos, brinquedos, lancheiras, toalhas, cobertores, e até produtos alimentícios. A lista é imensa e aumenta a cada dia. Todo esse legado, que teve início com a morte de Martha e Thomas Wayne obviamente não pode ser creditado apenas a Joe Chill, assassino dos pais de Bruce. Ele não apertou o gatilho sozinho.

Existem heróis esquecidos e, em determinados casos, o esquecimento é proposital. É o caso de Bill Finger. Finger criou grande parte do personagem que conhecemos hoje. Criou sua ideia de uniforme, os roteiros de suas primeiras histórias, Robin, a batcaverna, o batmóvel e até mesmo Gotham City. Mas viveu como um anônimo até para quem lia seu trabalho.

Uma das tentativas de consertar este anonimato é o lançamento pela prataforma de streaming Hulu do documentário Batman & Bill dirigido por Don Argott e Sheena M. Joyce com apresentação de Marc Tyler Nobleman. O trabalho também faz uma retrospectiva da carreira de Finger na indústria e sua relação com Bob Kane, intercalado por simulações em forma de animação e depoimentos dos quadrinistas Kevin SmithTodd McFarlane e Roy Thomas, além de  familiares de Bill.

O documentário foi lançado em 6 de maio de 2017 porém está disponível apenas nos Estados Unidos e Japão, únicos países onde a Hulu opera.

Mais de um

Graças à um acordo entre Bob Kane e os editores, apenas o nome de Kane apareceria nas páginas de Detective Comics e também nos créditos posteriores de histórias do Batman. Essa prática, mesmo que vista como absurda hoje em dia, era comum na era de ouro e prata das HQs. “Com frequência escritores foram passados para trás sobre receber créditos em co-criações, como foi o caso de Bill Finger. Também foi o caso de Gardner Fox ter crédito em Flash e não no Gavião Negro, etc. Às vezes os artistas é que eram cortados, como H. G. Peter no novo filme Mulher-Maravilha que, por outro lado, tem George Pérez, Robert Kanigher, Ross Andru e etc. Todos creditados e nem uma palavra sequer sobre a pessoa que, mesmo que a [família] Marston sempre tenha negado, seja o co-criador da MM. Quem está do lado do Bill Finger deveria também direcionar sua indignação nesse caso, mas possivelmente não vão”, declara Roy Thomas, escritor e editor de quadrinhos desde os anos 70 em entrevista exclusiva.

Dentre profissionais e fãs, Thomas foi um dos poucos que tiveram contato ou ao menos conheceram Finger pessoalmente. O evento aconteceu pouco antes de sua primeira e única aparição pública. Segundo Thomas, ele acabou chegando atrasado em um painel que também contou com a participação de “Jerry [Bails], Gardner [Fox], Otto Binder e Mort Weisinger” na Comic Con de Nova Iorque em 1965, ocorrida em 31 de julho e 01 de agosto no Broadway Central Hotel. O local não existe mais, uma vez que por problemas estruturais, veio abaixo em 3 de agosto de 1973 matando 4 pessoas e ferindo outras 12. “O conheci em julho de 1965, até onde me lembro na noite anterior ao início da convenção de Nova Iorque, em seu apartamento. Eu estava na companhia de Jerry Bails, meu então colega de quarto David Kaler e (talvez) mais duas ou três pessoas. Jerry e/ou Dave marcaram o encontro. Jerry conheceu Bill em fevereiro de 1961 quando visitou o escritório da DC Comics e manteve contato com ele desde então por cartas.”

Jerry Bails já nos anos 60 defendia o nome de Bill Finger nos créditos do personagem quando suspeitou que Bob Kane possivelmente não era o único autor de tantas histórias. Bails tinha um fanzine onde em 1965 escreveu um artigo sobre o assunto batizado de “If The Truth be Known OR Finger in Every Plot“, fruto de contatos que teve com a DC Comics e então descobriu a participação de um autor que não aparecia nos créditos. Recentemente, essa página original foi republicada na edição 139 da Alter Ego, revista especializada em quadrinhos e editada pelo próprio Roy Thomas, que ainda lembra vagamente no encontro com Bill Finger de “Jerry e Bill mostrando uma folha de papel em que os nomes alternativos para o Robin eram mencionados (Wildcat, Tiger e etc.) e foi isso. Acho que ficamos por lá por cerca de uma hora.” Thomas ainda diz que o foco em seu então novo trabalho na Marvel o distraiu sobre ser mais curioso em relação ao assunto naquele período, inclusive sobre a contribuição de Finger em outros dois conhecidos personagens da DC Comics: Lanterna Verde (Alan Scott) e Pantera, hoje membro da Sociedade de Justiça.

Artigo original de Jerry Bails na primeira tentativa conhecida de nomear Bill Finger como co-autor do Batman (Reprodução: noblemania.blogspot.com)

Sequência (Reprodução: blogs.larepublica.pe/comics_info/)

 

O mais cedo possível

Esse foi o principal alicerce para a criação do livro Bill The Boy Wonder, também de autoria de Marc Tyler Nobleman. O livro contém ilustrações de Ty Templeton e publicado em 2012 pela editora norte-americana Charlesbridge Publishing. Segundo o autor, sem o sem o artigo de Bails seu livro possivelmente não existiria.

O livro, em capa dura e com 48 páginas é voltado ao público infanto-juvenil, com cores leves e traços de linha clara. A ideia de atingir este público em específico veio da urgência dos fãs saberem o quanto antes sobre esta história. Em conversa com a Torre de Vigilância, Nobleman informa que “[a primeira vez que ouviu falar de Bill] foi entre o fim dos anos 90 e começo dos anos 2000. Comecei a restaurar o legado de Bill em 2006 quando iniciei as pesquisas para meu livro. O documentário [Batman & Bill] começamos a fazer em 2008, dois anos antes de eu conseguir o contrato para a publicação do livro! Mas não deu certo e comecei de novo com outras pessoas em 2011. Dessa vez, também não foi longe… mas quando em 2015 a alteração dos créditos aconteceu, começamos a trabalhar nele de novo.”

Capa do livro Bill The Boy Wonder (Reprodução: noblemania.blogspot.com)

Apesar de BTBW ser um livro presumivelmente voltado para crianças, Nobleman o rotula como “um livro ilustrado para todas as idades. Escrevi alguns outros livros para crianças antes desse então eu já estava acostumado aos desafios. Crianças são inteligentes. Há uma forma sensitiva de dizer à elas quase tudo. Este é um conto cauteloso. Espero que crianças aprendam a não tratar os outros como Bob tratou Bill e não deixar que as pessoas as tratem do jeito que Bill deixou Bob fazer.”

Bob Kane viveu uma vida de celebridade: Sempre era visto em programas e eventos relacionados ao Batman que faziam o personagem se tornar uma marca ainda mais valiosa. Apesar das denúncias, continuava a declarar que era o único criador do personagem e que Finger “estava tomando mais crédito do que merecia”. Aproveitando o sucesso, Kane vendia telas com ilustrações do Batman no estilo que o consagrou na era de ouro e prata. Porém, a autoria destas telas é discutível. Tom Andrae, co-autor do livro Batman & Me, autobiografia de Bob Kane publicada em 1989chegou a dizer que tais pinturas não eram da autoria de Kane, mas não se sabe ao certo quantas telas foram produzidas nem o nome de seu(s) autor(es). Em um evento de exposição destes quadros até Tim Burton, diretor dos filmes do Batman de 1989 e 1992, esteve presente. Como homenagem póstuma, Kane teve seu nome imortalizado na calçada da fama em Hollywood.

Bob Kane com algumas telas de autoria contestada (Reprodução: popculturesafari.blogspot.com)

Tais problemas em relação aos devidos créditos a produtos relacionados gerou inimizade de Bob Kane com outros autores, como por exemplo, Jim Steranko. Ainda em sua autobiografia, Kane chega a informar que Bill Finger teria “50% ou mais” de participação na criação de Batman. Apesar de tentar consertar a falta de crédito dada a Finger, Kane no mesmo livro publica uma folha com sketches datada de 1934 com várias características ligadas ao que se tornaria o Homem-Morcego inspirada nos esboços que Leonardo da Vinci fazia para suas criações.

Sketches datados de 1934 (Reprodução: www.entrecomics.com)

 

“Super-heróis são ficção. Seus criadores, claro, são reais, o que os fazem ser humanos e o que tornam imperfeitos. Não espero que ninguém seja perfeito mas espero que todos sejam bons e justos, até se você NÃO criou personagens que são conhecidos por serem bons e justos! Eu não respeito Bob pelo desrespeitoso jeito que ele tratou Bill e outros que o ajudaram em sua carreira”, completa Nobleman que, com seu trabalho no livro e no documentário, teve acesso a arquivos de áudio com conversas de Bill Finger e conheceu uma neta de Bill que até então não sabia que existia.

Depois de tudo

Além de seu trabalho como roteirista nos quadrinhos, Finger também foi parar na televisão, inclusive escrevendo o roteiro de dois episódios da série de TV Batman dos anos 60 (The Clock King’s Crazy Crimes / The Clock King Gets Crowned, respectivamente, 11º e 12º episódios da 2ª temporada). Ainda nos quadrinhos, tentou no início dos anos 70 trabalhar para a Marvel de acordo com Roy Thomas, que tem “certeza que foi na época (se não, um pouco antes) de eu ser o editor-chefe, mas eu não me lembro do Stan [Lee] sugerindo a mim interesse em ter Bill escrevendo para a Marvel. Estranho… porque por mim poderíamos usá-lo nas [então] novas revistas em preto e branco, ao menos. […] eu gostaria de por conta própria ter buscado Finger para escrever algo ou que ele tivesse vindo até mim em meados de 1972 (quando eu me tornei o editor-chefe) porque eu poderia ter oferecido algum trabalho à ele ou então sugerir a outros (como Marv Wolfman) para fazer. Claro, ele morreu não muito depois… então não posso sequer ser 100% seguro que ele estava procurando trabalho naquele dia que ele (provavelmente a seu próprio pedido) ter se encontrado com Stan, embora é difícil imaginar qualquer outra razão pela qual ele estava lá. Porque Stan não o referiu a mim, eu não sei…”

Bill Finger morreu pobre e solitário em 18 de janeiro de 1974, num apartamento em Nova Iorque com sua TV em preto e branco ligada em um canal fora do ar. Seu cadáver foi encontrado por Charles Sinclair, um amigo que tinha a cópia da chave do apartamento. O laudo médico apontou causas naturais. Sua morte deixou no ar vários mistérios, um deles, por que nunca reivindicou um direito maior sobre suas criações. Uma suspeita é que sua condição financeira não permitiu.

Por muito tempo veiculou-se que Finger foi enterrado como indigente, porém em Batman & Bill é informado que seu filho Fred Finger atendeu o desejo do pai de ser cremado e espalhou suas cinzas em uma praia sob uma marca na areia em forma de morcego. A informação não é dada diretamente por Fred Finger, que morreu em 1992 devido problemas de saúde ocasionados por ser portador do vírus HIV. Fred era bissexual e teve uma filha chamada Athena, nascida em 1976 que lutou para o nome de seu avô ser creditado nas publicações relacionadas ao super-herói, cujo acordo firmado teve início nas edições Batman and Robin Eternal nº 3 e Batman: Arkhan Knight – Genesis nº 3ambas datadas de outubro de 2015.

Uma das primeiras HQs a darem crédito a Bill Finger, mais de 40 anos após sua morte (Reprodução: comixology.com)

Intermináveis agradecimentos a Roy Thomas e Marc Tyler Nobleman pela ajuda na realização desta matéria

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Sobre o Autor

Marcus Santana

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