Anime Cultura Japonesa

“Bocchi The Rock!”: Amor, amizade e tecnicidades

Escrito por Vini Leonardi

Toda obra, seja qual for o tipo de mídia, funciona em duas partes: Ela é a junção de o que o autor ou autores criaram e entregaram, com a visão e perspectivas daqueles que a consomem. Cem pessoas terão cem experiências diferentes ao assistir um mesmo show, e parte da beleza da arte está justamente nisso.

Isso não quer dizer, porém, que a experiência não é moldada a partir do material. O papel dos criadores é tão importante quanto o de quem recebe, pois são eles que geram a moldura que será pintada por cada um. E molduras diferentes geram quadros diferentes.

Dessa forma, obras que são emolduradas com amor e entusiasmo estão fadadas a gerar reações positivas e incrivelmente animadoras por parte de seu público. “Bocchi The Rock!”, o animê dessa postagem, é um desses casos: Um show que transborda amor por parte de seus criadores e envolvidos, onde talentos e sonhos se transformam em personalidade e profundidade, sem perder o valor superficial.

São várias palavras para fazer uma introdução que diz “Minha nossa que animê bem produzido“.

Baseado num mangá 4-koma de mesmo nome, escrito por Aki Hamaji e publicado no Japão na famosa revista Time Kirara (mas ainda inédito no Brasil), “Bocchi The Rock!” é um animê recém-terminado com doze episódios. A série foi animada pelo estúdio CloverWorks, com produção de Shouta Umehara e direção de Keiichirou Saitou (guarde esses nomes pois vou citá-los mais tarde).

Segue o trailer, fornecido pela Crunchyroll, que tem os direitos de exibição da obra no Brasil:

“Bocchi The Rock!” é sobre a Bocchi, e sobre Rock’n’Roll. Claro, é o que o nome indica. Mas é muito mais que isso. Já que a Crunchyroll simplesmente não tem uma sinopse pro animê (não me pergunte o motivo, eu também não sei), deixa eu explicar com minhas próprias palavras: A protagonista, Hitori Gotou (Apelido: “Bocchi”), é uma adolescente com problemas sérios de ansiedade, que começa a tocar guitarra na – – esperança de se tornar popular. Por conta de uma série de coincidências, ela acaba entrando para uma banda e, como o narrador da sessão da tarde diria, se mete em altas confusões.

Mais do que apenas uma comédia descompromissada, o animê se esforça para passar uma mensagem: A “jornada” é tão valiosa quanto o destino, e o verdadeiro prêmio são os amigos que fizemos pelo caminho.

Piadas de lado, a amizade entre todo o elenco é o foco de uma história que usa as dificuldades sociais da protagonista como ferramenta para aproximar e expandir um genuíno afeto entre todos os envolvidos. Não só as garotas da banda, como a família da Bocchi, as funcionárias e o público da casa de shows, e até a bêbada que ela encontra na rua. Todo mundo se esforça para tentar tirá-la dessa “casca” introvertida, mas respeitando o seu ritmo.

Em vários momentos, a história poderia tomar atalhos ou tentar resolver as coisas do “jeito fácil“, mas o show faz questão de ir além e demonstrar que os sentimentos da Bocchi são importantes para os outros. Sem entrar em detalhes para não dar spoilers, mas um exemplo perfeito disso acontece quando uma personagem faz uma escolha na melhor das intenções, mas que acaba sendo um passo grande demais para a Bocchi dar de uma vez só. Ao invés de passar pano e descartar a piada como apenas uma piada, eles fazem a piada (é claro que fazem, ainda é uma comédia!), mas seguem com uma cena tocante de desculpas, onde a direção e a dublagem nos mostram o sentimento de culpa e a vontade de se redimir da personagem.

Ao mesmo tempo, a história vai nos mostrando como a existência da Bocchi, com todas as suas peculiaridades e excentricidades, também transforma para melhor as outras garotas da banda. A mensagem de que a amizade é uma troca de favores constante, sobre dar e receber, mesmo que você não perceba. A Bocchi não percebe que está ajudando suas amigas, mas o animê demonstra a mudança que ela causa. Todo mundo se esforça para melhorar, tanto para si próprio, como para ajudar a melhorar os outros, e esse ciclo autossuficiente de positividade e amizade é, na minha opinião, a parte mais bonita da história.

Captura de tela do episódio 8 de "Bocchi The Rock!" (Reprodução: Crunchyroll)

Minha parte favorita de “Bocchi The Rock!” é quando a Bocchi The Rock diz “Bocchi The Rock!” e rocka em cima de todo mundo (Reprodução: Crunchyroll)

Falando em coisas bonitas, a parte técnica do animê é uma beleza a ser comentada. Não digo necessariamente beleza visual, com cenários bonitos ou coisas do tipo. Embora não seja feio (longe disso, aliás), o espetáculo não é o ponto principal.

Você pode trabalhar o humor de diversas formas. Cada “gênero” de humor conta com ferramentas linguísticas, visuais, narrativas, etc, para gerar o efeito cômico que deseja. Saber aplicar o seu repertório técnico da forma certa, no momento certo, é um dos maiores segredos para uma comédia dar certo.

O que “Bocchi The Rock!” faz, outra vez, é ir além. Sendo um mangá 4-koma, ele já possui uma estrutura com um timing pré-estabelecido, onde cada piada tem seu tempo e sua cadência, como ditado pelos quatro painéis. A produção e direção do animê poderia ter ficado apenas nisso, mas decidiram expandir as possibilidades, trazendo diversos recursos visuais bem “fora da caixa” para ilustrar suas piadas.

Produtor Shouta Umehara e diretor Keiichirou Saitou, assim como o resto da equipe de produção, fazem escolhas ousadas e até mesmo absurdas, tudo em nome da comédia. Mudanças de estilo artístico; de mídia física; quebras de quarta parede e de paradigma… Se você acompanhou a internet nos últimos meses, deve ter visto ao menos uma cena bizarra envolvendo miniaturas de biscuit, pedaços de cartolina, ou bonecas de pano ou argila, apenas citando alguns. Esse tipo de humor descarado, extremamente “na sua cara“, faz com que a mensagem superficial do animê seja muito facilmente transmitida, para todos aqueles que não tem interesse em se aprofundar mais do que gostariam.

Captura de tela do episódio 10 de "Bocchi The Rock!" (Reprodução: Crunchyroll)

Eles vão jogar o humor na sua cara até que a sua cara fique assim (Reprodução: Crunchyroll)

E não são apenas insanidades artísticas que se destacam dentre as tecnicidades do show. A grande quantidade de músicas criadas e tocadas, todas com um nível ridiculamente alto de qualidade, são pontos óbvios a se comentar, mas o que eu gostaria de destacar é a cinematografia: A quantidade de cenas onde se vê a qualidade da direção é absurda. Os ângulos da câmera; o distanciamento; o foco; as sombras; o uso do cenário e de linguagem corporal. Tudo é usado com maestria como elementos de narrativa. Fazer o exercício de comparar como a Bocchi aparece durante uma apresentação, em relação a outras personagens, te mostra facilmente como uma boa direção ajuda a contar uma história, a dar personalidade e profundidade para uma cena.

A junção das duas coisas, amizade e tecnicidade, é que nos leva ao terceiro ponto: O amor. Dentro da obra, fica claro que as personagens criam um elo tão forte entre si pois elas amam umas às outras, e acima de tudo, amam a música e amam fazer música. O amor pela música é o que uniu essas quatro garotas tão diferentes, assim como todo o elenco de apoio, que em maior ou menor escala, se conheceu por causa dela.

Olhando por fora, também fica claro o amor da produção pela obra, com todas as indicações que demonstram que eles amam o que estão fazendo. Toda a dedicação de “ir além” e criar uma adaptação que supera os limites do material original e faz o animê crescer como uma entidade própria é só a ponta do iceberg. O que não vemos são os pequenos detalhes: Como as personagens são nomeadas em homenagem aos membros da banda Asian Kung-fu Generation, cuja autora do mangá é super fã; como a direção do animê aproveitou esse detalhe para nomear todos os episódios em referência a músicas deles; como eles se dedicaram para criar um ambiente que reflita a Shinjuku e Shimokitazawa (e outros lugares que elas visitam, como Enoshima) do momento atual, recriando cenários baseados no local real, quase que como um documentário urbano; como fizeram uma mini-série com a dubladora da Bocchi, ensinando-a a tocar guitarra, e que foi usado como referência para o próprio anime; como fizeram vários covers das músicas do show e disponibilizaram no YouTube logo após os episódios, junto com versões de estúdio e com letra… Bem, acho que deu para entender, né?

Captura de tela do episódio 12 de "Bocchi The Rock!" (Reprodução: Crunchyroll)

São os pequenos detalhes, que você pode não perceber conscientemente, que fazem cada cena se destacar (Reprodução: Crunchyroll)

Para encerrar, uma paráfrase de uma passagem do próprio animê: “Bocchi The Rock!” é específico, e certamente não é para todo mundo. Mas, para aqueles com quem a obra ressoa, é uma garantia de sucesso, onde você sente a paixão transbordando por todos os lados. Com amor, amizade e tecnicidade, o “show” é realmente um “Show” que te fará rir, chorar e se emocionar, se assim você quiser. Depois disso tudo, acho que fica fácil adivinhar que a nota do redator é 5/5, e que você pode esperar esse nome no topo da lista de melhores do ano (que deve sair em breve).

“Bocchi The Rock!” está disponível na plataforma de streaming Crunchyroll, completo em 12 episódios e legendado em português.

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Sobre o Autor

Vini Leonardi

Cavaquinho na roda de pagode da Torre. Químico de formação, blogueirinho por diversão e piadista de vocação. "Acredito que animês são a mídia perfeita para a comédia, e qualquer tentativa de fazer um show sério é um sacrilégio", respondeu ao ser questionado sobre o motivo de nunca ter visto Evangelion.

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