Quando a Netflix anuncia sua próxima adaptação, seja de mangá, anime ou gibi, a resposta do público é unânime: Não vai dar certo! O hype não alcança nem 1% e resolvemos esquecer que tal ideia será concebida. Mais fácil manter a felicidade com a obra original, pois assim não sofreríamos com a falta de tato em trazer para as telinhas.
Imaginem então a reação coletiva em 2019 quando a plataforma de streaming revelou que Sandman seria mais uma produção que ganharia sua versão televisiva. Como colocar os elementos que tornaram a obra num fenômeno no formato de série? Como adaptar o impossível? Como atrair o público que não leu? Questionamentos até válidos, uma vez que não estamos falando de uma história em quadrinhos qualquer. Neil Gaiman conseguiu o diferencial em colocar com cuidado e carinho diversos assuntos metafísicos, além de abordar toda a violência do ser humano. Tudo isso com a riquíssima mitologia dos Perpétuos.
Na última sexta-feira (5), quatro anos depois, o resultado dessa preparação finalmente foi lançado. A hora da verdade chegou: a série fez jus ao gibi?
Fez e como fez. Respondo com um baita sorriso no rosto ao reconhecer que a Netflix fez um excelente trabalho de casa. Enquanto escrevo esse texto, os 10 episódios passam como flashback em minha mente e só resgata a tamanha alegria que tive ao perceber que está tudo ali: fidelidade e essência dos personagens.
Os diálogos foram retirados diretamente das páginas do gibi e quem optasse por acompanhar os episódios com o primeiro volume do lado, poderia fazer tranquilamente. Isso acaba trazendo certo conforto entre os leitores, uma vez que não viram a necessidade de mudar as falas. O que precisava ser dito e explicado estava ali na obra original. Claro que algumas mudanças foram realizadas para melhor encaixe das histórias, porém não afetou a narrativa. Por exemplo, a aparição de Coríntio já no episódio Piloto. Decisão feita para criar o antagonismo com Morpheus antes do confronto entre os personagens posteriormente.
Tom Sturridge (Irma Vep e On the Road) foi um dos destaques. Sendo a escolha perfeita para o Sandman, o ator teve a maestria de apresentar as nuances de ser um Perpétuo. Mostrou o lado impiedoso e ao mesmo tempo benevolente do Sonho. Os trejeitos como o olhar e a voz grave colocaram ainda mais identidade. Boyd Holbrook (Logan e Predador) não fica pra trás em sua interpretação convincente como Coríntio e por ser um ator carismático, acredito que caiu no gosto do público mesmo sendo o vilão.
Gwendoline Christie (Game of Thrones e Star Wars: O Despertar da Força) soube passar toda a imponência de Lúcifer, então sua primeira aparição em Uma Esperança no Inferno só tornou o episódio muito mais gostoso de assistir. Sendo o quarto episódio o início de uma sequência de mais dois excelentes.
David Thewlis (Harry Potter e Mulher-Maravilha) foi outro que deu o show de interpretação como John Dee. Mesmo sem o visual mais medonho dos quadrinhos, Thewlis demonstrou com êxito o personagem perturbado. Com diálogos mansos que carregavam toda a tensão e perigo de que o vilão poderia cometer o ato mais vil a qualquer momento. Seu auge foi em 24/7, o quinto episódio. O experimento na lanchonete e fora dela trouxe uma questão interessante sobre a sociedade: O que seria do mundo sem as mentiras que contamos? Pensamentos violentos, verdades não ditas e muito mais fazem parte do nosso imaginário secreto. Conversamos no nosso íntimo sobre sentimentos que não queríamos que os demais soubessem. Só revelamos o que queremos que seja contado. Imagina viver sem essas barreiras sociais, onde o caos e violência andariam de mãos dadas.
Mason Alexander Park trouxe uma interpretação notável de Desejo e sua carisma o fez entrar na minha lista de personagens favoritos da série. Impossível odiar totalmente depois dessa belíssima entrega de atuação. O bom que teremos muito mais de Desejo pela frente.
E temos a Morte. Ah, a Morte! Interpretada pela fantástica Kirby Howell-Baptiste, sua primeira aparição em O Som das Asas Dela (sexto episódio) veio carregada de muita sensibilidade ao tratar sobre o processo que as pessoas mais temem: a morte. Exatamente como no quadrinho, acompanhamos Morpheus vendo de perto sua irmã levando novos habitantes para o seu Reino. Essa atividade consegue ser mórbida e linda numa balança equilibrada. Os diálogos da Morte são tocantes, explorando bem esse conceito de vida e morte. Mostrando também esse fardo de retirar a vida de qualquer ser vivo, não importa a idade. Foi esse episódio que Gaiman revelou ter se emocionado. E com razão!
Menções honrosas para Johanna Constantine, Rose, Gilbert, Merv e cia. por suas respectivas atuações no desenvolvimento de suas histórias. Destaco aqui a sequência do Verde do Violonista retomando o seu cargo no Sonhar. Foi lindo visualmente o verde tomando conta de todo o ambiente, dando mais vida com suas matas e florestas.
Sandman também não pecou no que diz respeito aos seus plots, uma vez que foram tratados sem aquela enrolação. Os arcos foram desenvolvidos da maneira correta e mesmo parecendo desconexos à primeira vista, logo provou-se que estavam interligados. Isso também aconteceu nas histórias da obra original e com certeza veremos mais nas próximas temporadas (amém!).
Em sua temporada de estreia, Netflix mostrou em sua adaptação o impacto que Sandman causou em que leu os quadrinhos e ainda abriu portas para a próxima geração de fãs dos Perpétuos.
Nota: 5/5
Sonhar: A primeira temporada adaptou os arcos Prelúdios e Noturnos e A Casa de Bonecas do primeiro volume de Sandman.
Sonhar 2: Convenção de Cereais, apenas.
Sonhar 3: Já quero ver a paz de reunião dessa família dos Perpétuos.
Sonhar 4: Estou pronto para Sonho de uma Noite de Verão.
Sonhar 5: E a Nada, hein?!
Sonhar 6: E que venha a Estação das Brumas!
Sandman está disponível na Netflix.