Quadrinhos

Um processo fora da linha e o resultado é além da compreensão

Escrito por Marcus Santana

Na terceira obra do quadrinista franco-belga Marc-Antoine Mathieu publicada no Brasil, sendo a segunda da mesma série, a editora Comix Zone dá sequência ao inovador mundo de Julius Corentin Acquefacques que, a cada nova aventura publicada, surpreende o leitor com novas possibilidades de como se pode contar uma história em quadrinhos.

O Processo é, na verdade, o terceiro tomo da série Julius Corentin Acquefacques, O Prisioneiro dos Sonhos a ser publicado originalmente, no já distante ano de 1993. Por uma sacada editorial, a Comix Zone decidiu momentaneamente pular o “volume dois” para provar que a leitura de cada capítulo é independente e não faz diferença da ordem escolhida. Por exemplo: O leitor pode perfeitamente começar a leitura por O Processo e depois passar por A Origem que não haverá perda no entendimento.

Neste volume, a narrativa inicia filosofando a respeito de que, assim como em nossas vidas, um pequeno mal funcionamento de qualquer engrenagem pertencente a um objeto muito maior (no caso, um relógio), pode desencadear em uma mudança total na ordem de acontecimentos de todas as situações subsequentes. Devido à pequena falha de apenas uma peça no relógio de Julius, o protagonista acaba se adiantando para mais um dia de trabalho. Durante sua rotina matinal, acaba se deparando com uma duplicata de si mesmo que ainda estava dormindo em sua cama. A confusa situação, ocorrida graças a míseros 26 minutos de diferença, não impede “Julius 1” de ir trabalhar ao passo que “Julius 2” tenta o impedir uma vez que percebe que foi justamente um experimento em seu local de trabalho que desencadeou todo o processo, como o próprio título da obra sugere.

Assim como já havia feito em A Origem e também em Deus em Pessoa, Marc-Antoine Mathieu provoca o leitor constantemente, inclusive ao dar a impressão que O Processo seria um tomo inferior ao “anterior”. Que se explique: A leitura começa boa, mas a inquietação de que o volume “anterior” era melhor é constante. O leitor busca a cada momento aquela pitada de inovação que parece não chegar. Mais do que isso: a leitura de O Processo parece totalmente desconexa em várias partes. Porém, tudo não passa de uma peça que foi pregada, e quando já estava quase desistindo, o leitor é surpreendido.

Em mais uma sacada genial de Mathieu, o autor ousa ao repaginar totalmente o corte de uma HQ já na primeira página da parte 5, intitulada Infrasonho ou Ultrarrealidade. Assim como em A Origem, o corte de página é refeito, dessa vez adotando um recorte circular como um redemoinho, mostrando Julius saindo da história em que estava e indo parar em um limbo.

Assim, todas as pessoas que pareciam soltas se encaixam em cada quadro que se segue. Tudo agora faz sentido e dá a vontade de querer se pedir desculpas por parte do leitor pela inicial desconfiaça. De minha parte, peço que Mathieu me perdoe por outrora pensar que o mesmo me decepcionaria e que dessa vez Julius Corentin Acquefacques não teria uma aventura digna de sua fama. Desde o começo a dica estava já na capa e mesmo debaixo de nosso nariz não prevemos a sacada.

A edição da Comix Zone segue o mesmo padrão da anterior em número de páginas, papel, capa dura, formato e, principalmente, nos cortes de páginas inovadores quando assim é necessário. Em A Origem tivemos um quadro recortado no meio de uma página e agora temos um redemoinho em forma de HQ. As sacadas do autor são geniais, mas também deve-se reconhecer a coragem da editora em adotar tal projeto de forma fiel, não só porque se não fosse exatamente desse jeito a história não faria sentido, mas também levando em conta os altos custos desse tipo de produção, ainda mais levando em conta a crise mundial que temos em relação à disponibilidade de papel

Uma ressalva que deve ser feita é que não era necessária a numeração de páginas, visto que a edição original já a possui. Mais do que isso: a partir da página 36 da numeração original (ou 38, com a renumeração da edição brasileira) a numeração desaparece para dar a ideia de que o personagem está fora da história em quadrinhos, mas essa impressão parcialmente some a partir do momento em que há duas numerações diferentes e uma persiste. Uma pena.

Apesar do deslize, O Processo continua sendo uma obra-prima digna de nota máxima e que vale cada centavo investido. É praticamente impossível não colocar a saga como um dos lançamentos do ano e, ao meu ver, a melhor HQ publicada no Brasil em 2022 até o momento. De acordo com a própria CZ, o plano é lançar dois volumes ao ano da série que, ao todo, tem sete. Mesmo entendendo perfeitamente a decisão editorial, fica aqui o desejo que esta seja revista porque, a cada capítulo lido, o leitor fica cada vez mais ávido para saber como o seguinte o surpreenderá.

 

Prisioneiro dos Sonhos Vol. 2: O processo 
Marc-Antoine Mathieu (roteiro e arte)
Fernando Paz (tradução)
Comix Zone
Capa dura
48 páginas
28,5 x 20,5 cm
R$72,50
Data de publicação: 07/2022

 

 

 

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Sobre o Autor

Marcus Santana

O que seria de nós sem quadrinhos?

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