Tela Quente

Mank: Uma perspectiva familiar do cinema

Escrito por Thiago Pinto

“Você não pode captar a vida inteira de um homem em duas horas. No máximo pode deixar uma impressão.”, responde Mank ao editor John Hauseman (Sam Troughton) explicando as dificuldades sobre criar um roteiro tão complexo que captasse a essência da vida de um homem. Além de servir como uma contestação interessante e verdadeira, a fala reflete um pontual ato de metalinguagem de seu roteirista Jack Fincher, porque este próprio está tentando deixar a impressão sobre uma figura imprescíndivel para uma das mais revolucionárias obras da história do cinema. No caso, Herman J. Mankiewicz.

Usar a expressão “a mais revolucionária das obras…” pode soar ultrapassado e, realmente, demonstra certa limitação na tentativa de descrever e dar a devida importância à obra. Contudo, o uso da expressão em relação ao filme em que estamos referenciando não é má ideia, pelo contrário, estabelecer Cidadão Kane (1941) como um dos mais revolucionários filmes da história do cinema é responsabilidade de todos que prezam pela inventividade e criatividade artística. E de criatividade, o filme escrito por Herman e o lendário Orson Welles – que também dirige – entende muito bem. Foi o ponto onde a estrutura ímpar do roteiro excedeu as páginas e, através da montagem e edição perspicazes, além da concepção visual de Orson, fizesse com que os elementos básicos e complexos, dos diálogos às descrições de cena, fossem compreendidos e revelados na tela em excelência, resultando na história que marcaria a indústria americana para sempre.

O roteiro de Jack Fincher, pai do diretor David Fincher que faleceu antes de ver seu projeto ir às telonas, imprime o seu próprio vasto conhecimento sobre os bastidores da produção de Cidadão Kane, desde os processos criativos dos idealizadores ao contexto político em que a indústria estava inserida. Mank é, antes de tudo, um material de alta significância histórica, tanto política quanto cinematográfica. A história não só investiga as tramas pessoais de Herman, mas também trata de figuras importantes no meio da época, como donos de grandes estúdios e celebridades que tomariam seu caminho rumo ao estrelato posteriormente, estes que compuseram a classe hollywoodiana por longos períodos. Há de reconhecermos, assim como a vasta quantidade de figuras retratadas, o contexto em que a trama se insere; no quesito sócio-político, a indústria estava sofrendo as consequências decorrentes da Grande Depressão, enquanto na produção de filmes em si,  havia a crescente produção de filmes B por conta do orçamento limitado dos estúdios e a busca por formas mais baratas de manter a produção e a lucratividade.

Em pouco mais de um parágrafo, fica evidente o conteúdo que Jack transborda nas páginas e sua vasta sabedoria sobre os mecanismo e as relações no cinema americano. Contudo, a quantidade excessiva – embora fundamental – de personagens que aparecem na vida de Mank, além das inúmeras particularidades, tanto da época quanto do próprio processo genuíno de idealização do filme, tornam a narrativa demasiadamente complicada e de difícil acompanhamento em inúmeras passagens – e a direção de Fincher não alivia tampouco. Dessa forma, Mank se assemelha mais a um filme para se exibir aos apaixonados por cinema – estudantes e afins – do que àqueles que buscam obras próximas à filmografia marcante do diretor, mais investigativas e, por que não, inclusivas. E outro tropeço que deve ser mencionado é a falta de critérios para escolher os caminhos a serem seguidos, sendo que o maior foco deveria ser a vida e os conflitos do roteirista, mas que perdem espaço e força para os tantos contextos que o roteiro se propõe a retratar.

A vida de Mank nunca foi abordada de forma devida, enquanto Orson Welles sempre foi mais apreciado e paparicado pela mídia. Embora com grande prestígio dentro dos estúdios, conhecido só pelo nome por muitos, Mankiewicz tinha sérios problemas pessoais. Os vícios envolvendo bebidas alcoólicas o colocaram em uma situação de extrema vulnerabilidade e acarretaram em diversos problemas de alcoolismo, inclusive sua própria morte, que ocorre alguns anos após os acontecimentos retratados. Além do vício citado, a personalidade de Mank não era fácil de se lidar idem, havia certa soberba e arrogância que ficavam mais nítidas quando se relacionavam ao seu trabalho escrito. Confrontava diretamente os chefes dos estúdios e tinha uma postura profissional por vezes negligente. Esses problemas na vida de Mank, todavia, não comprometiam sua habilidade única na hora de escrever e trabalhar nos roteiros. Sua fama em Hollywood foi construída a partir do reconhecimento dos ótimos roteiros entregues por ele. O talento nunca foi deixado para trás em detrimento dos seus problemas.

Estas relações conflitantes com os magnatas e mandantes da época foram as principais inspirações da história de Kane, da ascensão ao declínio, que, após Cidadão Kane ser exibido, rendeu diversos problemas e discussões nos bastidores. E é irônico, como contraditório igualmente, que um dos maiores marcos da indústria cinematográfica americana fosse partir de uma reflexão crítica à própria, da escalada ao poder absoluto, os holofotes, a mídia e o capital, à decadência não só econômica, mas moral e ética, a escalada pelo poder é solitária tanto quanto a descida.

Pela complexidade dos aspectos da vida de Mank, o ator escolhido para interpretá-lo não poderia ser alguém que fosse impossibilitado de expressar as emoções do personagem, assim como os reflexos físicos de seus vícios. Gary Oldman foi a opção perfeita, porque sabe entregar qualquer exigência particular dos personagens, exemplo disso é sua dedicada atuação como Winston Churchill, que o rendera um Oscar em 2018. Oldman se entrega totalmente à interpretação, o corte de cabelo, o físico, a postura e o sotaque são transformações fundamentais nesse novo trabalho. Todas as cenas que envolvem diálogos são dominadas em tela pelo ator, é de uma naturalidade assustadora. O particular vício e a vida boêmia que Mank levava talvez fossem o maior desafio aqui, e Oldman sempre parece minimamente alcoolizado, e os excessos acarretam algumas cenas cômicas, mas profundamente trágicas. A sequência que se destaca aqui é o monólogo em uma mesa de jantar, como se todos os demônios de Herman fossem expulsos do corpo através das palavras proferidas.

O enorme foco na vida de Herman, como já comentado, fica disperso em meio de tantos contextos paralelos. Dentro desses contexto, se encontram dois atores que, mesmo com pouco tempo de tela, entregam ótimas performances. Amanda Seyfried, como Marion Davies, é brilhante na forma em que conduz a personagem, e quando compartilha cenas com Oldman expões domínio e química incomparáveis. Outro ponto alto no elenco, e ao mesmo tempo surpreendente, é Tom Burke como Orson Welles. Não apenas pela semelhança na aparência, mas o tom de voz de Burke remete muito ao lendário ator. A voz, por ser marca registrada e inigualável de Welles, é de extrema importância na caracterização, mas, em Mank, há uma importância narrativa pelo fato de que o personagem, primeiramente, faz quase todas suas aparições por telefone, coberto por sombras que entregam a imponência inerente à figura de Welles. Quando o telefone toca, o nervosismo dos personagens ao redor já dão relevância à pessoa que está na linha.

Para todos esses elementos se conversarem como em uma orquestra, só um maestro altamente competente como David Fincher é capaz de dar tom e ritmo imprescindíveis. Primeiramente, construir visualmente o roteiro concebido e criado pelo pai é de uma responsabilidade inigualável, como se a família Fincher escrevesse uma carta de amor ao cinema, e pai e filho trouxessem uma perspectiva conjunta sobre a paixão compartilhada pelos dois. Fincher surpreende em toda sua filmografia pelo fôlego que aplica nas obras, independente se a trama for extensa, complexa, recheada de personagens, o diretor domina tecnicamente e desenvolve uma linguagem particular e cheia de ânimo. Embora não consiga imprimir o mesmo ritmo pelas duas horas seguidas, devido às próprias limitações do roteiro, Mank esbanja domínio técnico. Como em alguns diálogos, onde se adota a metalinguagem, a direção adota-a por completo. O preto e branco habitualmente associado às obras da época, a montagem e a edição repletas de técnicas antigas (o uso dos fades nas passagens de ambiente, os detalhes de exibição das películas) e os movimentos bruscos de câmera, colocam toda a linguagem cinematográfica em prol de homenagear e tratar suas inspirações com reverência.

A trilha constituída por Trent Reznor e Atticus Ross é outro ponto fundamental para a ambientação completa. Confere autenticidade histórica e remete aos acordes usados anteriormente, as músicas nos colocam dentro da época toda hora, como se realmente estivéssemos assistindo a algo das décadas passadas. O diretor de fotografia Erik Messerchdmidt auxilia e aprimora a ambientação e expressa na cinematografia rimas visuais com o clássico Cidadão Kane, retratando e aproximando a vida do artista com a arte em si. Essas rimas, juntas aos trechos técnicos comuns na decupagem do roteiro, aparecendo em tela com objetivo de decretar a mudança dos ambientes em cena, são reflexos de inventividade que Fincher se permite dar, mas seu papel aqui é mais de se submeter e reproduzir uma linguagem anterior do que aplicar a sua.

Mank vai além dos bastidores e da relação acirrada entre Orson e Hellman na criação de Cidadão Kane, isto é, constrói uma observação analítica da indústria cinematográfica e dos integrantes que a compõe. Mesmo que se disperse nas duas horas em tantos contextos distintos, o roteiro trata de engrandecer a figura do roteirista e lhe conferir a devida importância, tratando as particularidades de sua vida como uma forma de expandir nossos olhares sobre um clássico absoluto. Pai e filho não captam a essência inteira do cinema – como se isso fosse possível – em duas horas, mas deixam juntos uma impressão apaixonada e reverente.

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Sobre o Autor

Thiago Pinto

‘’E quando acabar de ler a matéria, terá minha permissão para sair’’

-Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge (2012)