Quadrinhos

Lute para não cair na Obsolescência Programada

Escrito por Marcus Santana

Valor que surge mais de uma vez numa distribuição de frequência

Conforme registrado no dicionário Michaelis, a definição acima é um dos significados aceitos para a palavra moda. Entretanto, é preciso admitir que tal sentido é raramente usado em nosso cotidiano, ficando reservado quase que exclusivamente à exercícios em livros e provas de matemática. Não é à toa que esta é provavelmente a menos conhecida acepção do substantivo feminino em questão, e para chegar à mesma, é necessário passar por outras seis explicações a respeito do mesmo vocábulo.

A moda, em conceito popular, remete a ideia de que vários indivíduos estejam usando, agindo, falando ou até mesmo praticando a mesma ação, tornando-a repetitiva em nossas vidas. Pois para alívio dos leitores de histórias em quadrinhos, o que vemos em A Obsolescência Programada dos Nossos Sentimentos, disponível em nosso mercado pela Pipoca e Nanquim, não passa sequer perto de ser redundante.

IMAGEM: Amazon.com.br

Apesar dos pesares, podemos declarar sem medo de errar que tanto Zidrou quanto Aimeé de Jongh estão na moda por aqui. Em um surpreendente ritmo, a quadrinista holandesa natural de Roterdã em menos de um mês teve dois títulos lançados no Brasil e com um terceiro já anunciado previsto para agosto, cada um dos três sob responsabilidade de uma editora distinta. Mesmo que em um intervalo mais espaçado, também podemos considerar o mesmo ao tratar do prolífico roteirista belga: desde 2017, cinco títulos do autor desembarcaram em nossas livrarias e lojas especializadas, seja aquecendo nossos corações com as férias da família Falderáut ou surpreendendo meio mundo com a anunciada biografia de um pintor catalão do século XIX. Assim, um curioso paralelo pode ser traçado entre a dupla criativa e os dois protagonistas presentes na narrativa gráfica aqui idealizada.

Ulisses e Mediterrânea são dois franceses de meia-idade. Ele, um viúvo recém demitido de seu emprego como carregador de caminhões mudança e que envergonhadamente satisfaz seus desejos carnais com uma prostituta bem mais jovem; ela, uma ex-modelo que hoje administra uma queijaria, acaba de perder a mãe e a cada dia que passa se arrepende de não ter vivido tudo que poderia, ao passo que a idade vai avançando.

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Em comum, é vista a notória solidão que assola a vida dos dois, que a veem cada vez mais se escorrer entre seus dedos indo de encontro ao dia em que não estarão mais presentes entre os vivos. Influenciados pela sociedade a qual os arrodeia, ambos pensam que estão ultrapassados, e que nada mais têm a acrescentar nem sequer a si mesmos. Tudo isso muda quando Mediterrânea tem uma consulta marcada com o Doutor Varennes que, por coincidência, é filho de Ulisses. A partir de então, duas vidas que pareciam caminhar para um fim encontram um novo começo.

Da mesma forma que nossos equipamentos eletrônicos se tornam ultrapassados cada vez mais rápido, os seres humanos também estão sofrendo do mesmo mal. Nos enchem a cada dia de etiquetas com prazos de validade, como se tivéssemos um limite de idade para estudar, trabalhar, conhecer pessoas, se apaixonar, namorar, casar, viver… Mas, assim como Ulisses e Mediterrânea, não somos obrigados a seguir a moda. Cada um tem seu tempo de alcançar suas metas e se prender aos padrões sociais traz sério risco de não viver para si mesmo, e sim para os outros, tirando o merecido disfrute que vem com nossas conquistas.

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O único problema de Obsolescência é que, do capítulo 3 em diante, é muito previsível o que se esperar do enredo. Ao final da narrativa, nos surpreendemos uma novidade até então impensada e que não se encontra registro na literatura médica, mas a licença poética dá um ar de renovação à trama. A história de encerra com a mesma exclamação com que se iniciou, agora com significado totalmente oposto, como um paradoxo entre a vida e a morte.

Editorialmente, o trabalho da Pipoca e Nanquim permanece irretocável. Não há nada ao que dizer sobre o tratamento gráfico à publicação: capa dura, papel couché que ressalta as cores vibrantes, tradução e revisão… talvez apenas alguns considerem estranha a escolha de traduzir os versos das canções presentes, uma vez que muitas vezes partes musicais são deixadas de forma ipsis litteris, mas é necessário lembrar que estas originalmente são em francês, idioma com menor número de falantes no Brasil, o que traria difícil entendimento ao público geral e assim faria a história perder parcialmente seu sentido, uma vez que os versos condizem com o ponto em que a trama está quando são apresentados.

Se alguém um dia dizer que seu tempo passou, deixe essa pessoa falando sozinha.  A história de Ulisses e Mediterrânea prova que nunca é tarde para viver e desistir nunca será uma boa opção.

 

A Obsolescência Programada dos Nossos Sentimentos
Zidrou (roteiro)
Aimeé de Jongh (arte)
Pipoca e Nanquim
Capa dura
148 páginas
23 x 15 cm
R$59,90
Data de publicação: 04/2022

 

 

 

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Sobre o Autor

Marcus Santana

O que seria de nós sem quadrinhos?

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