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Inuyashiki | A chocante sociedade japonesa retratada na ficção científica

Escrito por Gabriel Faria

Hiroya Oku é um autor controverso. Após 13 anos escrevendo e desenhando sua série mais longeva, Gantz, com a criação de Inuyashiki em 2014 o mangaká parece ter encontrado novos ares para sua habilidade primária: criar histórias de ficção-científica com algum valor moral, abordando aspectos da sociedade japonesa moderna através da violência típica de suas obras, com um visual extremamente realístico e cenas chocantes.

Em 1999 Oku lançou sua primeira obra com um pé no sci-fi. Zero One era uma história sobre um torneio de videogame, e o sucesso não foi alcançado como em sua série prévia de comédia romântica, Hen. Apesar do fracasso o autor iniciou em seguida sua mais duradoura e bem-sucedida publicação, Gantz, que rende frutos até hoje e através de uma narrativa louca, violenta e chocante, tornou-se um dos seinen mais marcantes dos quadrinhos japoneses.

Um dos aspectos de Gantz era, no meio da violência, sexo e alienígenas bizarros, tecer críticas à forma de viver dos seres humanos. Abordando a superficialidade do coletivo, preconceito e até mesmo falando sobre o papel da mulher no mundo (da forma mais rasa possível, mas está lá), as camadas mais “profundas” do mangá perdiam-se no meio de robôs gigantes e roupas coladas, com muitos peitos e bundas.

Com o fim da série em 2013, Oku levou um ano para bolar o que, aparentemente, é sua obra mais intelectual, sem deixar perder sua assinatura e estilo que ficaram marcados no universo de Gantz. Inuyashiki veio ao mundo nas páginas da revista Evening japonesa e agora alcança as bancas do Brasil em volumes bimestrais publicados pela editora Panini.

Inuyashiki possui uma premissa semelhante a de Parasyte (Kiseijuu), mangá de Hitoshi Iwaaki publicado no Brasil pela Editora JBC. A história é centrada em Ichiro Inuyashiki, um senhor de 58 anos que aparenta ser muito mais velho. Sua família não dá muita bola pra ele e constantemente o desrespeita, e no meio de sua vida infeliz, Ichiro descobre estar com um câncer terminal. Rodeado em desgraça, o senhor acaba por se envolver em um acontecimento que altera sua perspectiva da realidade: ele é transformado num ciborgue. E daí pra frente, a vida de Inuyashiki muda de forma radical.

Oku parece possuir uma missão com este mangá. Todo o primeiro volume é centrado quase que exclusivamente em criticar os aspectos mais deploráveis da sociedade japonesa moderna, que vão desde a marginalização dos jovens até o desrespeito e falta de empatia pelos mais velhos. Os idosos do Japão são desprezados, ignorados e solitários, enquanto as pessoas mais novas agem de forma egoísta, instável e passional. As críticas sociais, típicas de qualquer boa ficção científica, misturam-se com a vontade de Ichiro ao passar por esta experiência com “seres alienígenas” que mudaram seu corpo: tornar-se uma espécie de justiceiro, um super-herói que faz o bem para a humanidade, agindo onde ninguém mais parece enxergar os problemas.

Obviamente, surge também um possível antagonista que passou por essa “experiência” ao lado de Ichiro e tornou-se um psicopata assassino.

O autor pesa a mão na dramaticidade, algo extremamente necessário para uma história que toca em assuntos tão delicados. O objetivo aqui é chocar o leitor, propor uma reflexão que se aplica também ao nosso dia-a-dia, e tentar expandir a visão de mundo dos leitores, criando paralelos entre a personalidade do leitor com algum dos personagens secundários, cheios de falhas de caráter e vivendo suas vidas das formas mais comuns e desprezíveis.

A semelhança com Parasyte é traçada no modo em que a trama é abordada. De forma similar, os protagonistas passam por um de contato alienígena que os torna super poderosos, e tentam agir para o bem da sociedade. Da mesma forma, outra pessoa (no caso da obra de Iwaaki, outras) passa pela mesma mudança, e vai para o lado oposto. E no meio disso, as questões sociais, políticas e reflexivas são abordadas, com choques culturais e um texto sofisticado em ambos os casos.

Deixando de lado o principal atrativo, que é sua temática, Inuyashiki também é um mangá lindamente ilustrado. Oku-sensei refinou seu traço ao longo dos treze anos de Gantz, tornando-o ainda mais realístico, bem detalhado e fluido, com uma movimentação única que poucos profissionais conseguem retratar com clareza. A beleza da arte também contribui para a imersão, visto que este mundo é extremamente similar ao nosso, facilitando o reconhecimento e potencializando a mensagem que deve ser passada.

O mangaká também brinca com a metalinguagem, inserindo outros mangás na narrativa, tornando este mundo teoricamente fictício algo verdadeiramente inserido na realidade, um perfeito retrato do nosso mundo quando somado ao seu já citado belíssimo traço.

E apesar da narrativa mais calma, com capítulos cadenciados de forma bem amena, rapidamente o passar das páginas torna-se algo frenético, com ação e cenas marcantes, misturando emoção e repulsa pelos acontecimentos. Este desenrolar é típico dos mangás de Oku-sensei, que deixam o leitor empolgado e curioso para saber o que acontecerá em seguida. E ao contrário de Gantz, aqui ele não deve se perder na aventura, já que o final da obra está programado para setembro, quando o décimo e último volume da série será lançado no Japão.

Inuyashiki é tudo de bom que o gênero da ficção científica tem a oferecer. Apesar do currículo estranho de seu autor (ele mesmo brinca com isso), a obra parece vir para acrescentar algo ao mercado, unindo-se aos outros ótimos mangás com premissas mais reflexivas, como Assassination Classroom – que é uma crítica ao sistema de ensino – e Arakawa Under The Bridge, que fala sobre a aceitação do diferente na comunidade.

E sendo outro ótimo candidato ao posto de melhor mangá do ano, a obra de Hiroya Oku também acrescenta qualidade ao mercado, que passa atualmente por um belíssimo momento onde verdadeiros clássicos e novos-clássicos enchem as prateleiras de bancas e livrarias de todo o Brasil. A edição também conta com um belo glossário em suas páginas finais, que explica as referências e termos utilizados ao longo das 204 páginas do primeiro volume, que assim como a edição japonesa, possui um efeito holográfico especial em sua capa. Um capricho editorial respeitável, que faz valer cada centavo dos R$ 13,90 cobrados.

Recentemente o estúdio MAPPA anunciou que adaptará a obra para um anime, além de haver um filme live-action programado para 2018.

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Sobre o Autor

Gabriel Faria

Assistente Editorial, apaixonado por quadrinhos, redator da Torre de Vigilância, criador do blog 2000 AD Brasil e otaku mangazeiro nas horas vagas.