Serial-Nerd

Final de Better Call Saul é inevitável e incomparável

Escrito por Thiago Pinto

Foram seis anos. Com estreia em 2015, pairava sobre Better Call Saul uma única e sonora expectativa: o retorno ao universo Breaking Bad. Embora os criadores do spin-off prometessem uma história focada na origem do advogado ardiloso Saul Goodman, a audiência estava realmente interessada em assistir qualquer referência, easter egg ou participação da série original. O que receberam, afinal, foi uma série despreocupada com a sua fonte original, caminhando com pernas próprias ao estabelecer a sua razão de existir em si própria. Better Call Saul existe porque existe, porque Gilligan e Gould encontraram uma oportunidade de, para além da expansão dos horizontes interpretativos da história de Walter White (Bryan Cranston), apresentarem histórias e personagens complexos numa narrativa visual provocativa e densa.

Obsessão

A palavra “obsessão” define bem o tema central da sexta e última temporada de Better Call Saul. Por conta do assassinato da sua família, Lalo Salamanca (Tony Dalton) começa uma busca implacável atrás daqueles que foram responsáveis pelo ato; Nacho Vargas (Michael Mando) se encontra perturbado ao perceber que tudo ao seu redor o sufoca, sem chance de escapar da vida que escolhera; Kim e Jimmy estão obcecados com a destruição da reputação da carreira de Howard, este, que também entra numa paranoia ao acreditar (acertadamente) que a dupla está tramando contra ele. Já Gus Fring (Giancarlo Esposito), sempre frio e um passo à frente dos demais, se mostra uma pessoa insegura com a suposta ameaça iminente, na crença (também correta) que Lalo está vivo e à sua procura. Dessa forma, os primeiros episódios do final tratam de aprofundar as fragilidades e inquietudes de seus personagens; estas que acarretam em consequências dramáticas e severas para trama, como o suicídio de Nacho, que choca ao ser o único caminho encontrado pelo personagem para escapar da situação.

O que vemos a partir dessas inquietudes é uma narrativa ágil ao intercalar as tensões em vários episódios, fazendo com que certos acontecimentos se colidam com outros. Como o fato de Howard aparecer no apartamento na mesma hora que Lalo (adiante falarei mais sobre), ou a operação de segurança de Gus Fring ser questionada pela própria Kim.

Desenvolve-se, então, uma história pautada na perseguição psicológica. Com Gilligan e Gould no comando da arquitetura geral, todos os episódios têm uma técnica primorosa, característica das temporadas anteriores, ao estabelecer um padrão visual rico em detalhes com um ritmo gradual particular, embora familiar aos fiéis espectadores da série. Há preocupação milimétrica sobre tudo o que está em cena, quais objetos serão focados, ou desfocados, uma mise-en-scène cuidadosa e minuciosa, enquadramentos que, ou transmitem a sensação da cena, ou buscam esteticamente atribuir significado concreto no desenvolvimento dos personagens. Enfim, um virtuosismo técnico impressionante que coloca a série numa estante altíssima quando falamos de fotografia, design de produção, montagem e edição em produções televisivas.

Assim, acompanhada de responsáveis que sabem o que estão fazendo, a história da perseguição psicológica acaba se desenrolando para um caminho surpreendente, porém inevitável: Saul Goodman. São diversas passagens na série que poderíamos pincelar gritando: É AÍ QUE ELE VIRA O SAUL. Incontáveis os exemplos onde Jimmy aparenta mostrar a face de Saul Goodman, mas é um exercício fútil e desnecessário escolher uma única cena que exemplifique a transformação, porque há tons de cinza no processo dessa constituição, Saul resulta de vários acontecimentos combinados. Por isso, McGill e Goodman, pelo menos até Breaking Bad, vivem como um só.

Mas só até esse ponto. Saul Goodman poderia ser considerado o alívio cômico em Breaking Bad. O advogado criminal malandro, que sempre encontra uma forma de estar em cima e ganhar, com os ternos coloridos um tanto quanto antiquados, o cabelo estranho, colocam ele numa posição que contrasta com a frieza dos outros personagens. Após Better Call Saul, contudo, nossa visão sobre o personagem se altera drasticamente, ao descobrimos que seus sorrisos, sua fala rápida e incansável, seus ternos e luxos, suas tiradas com os policiais, tudo aquilo que compõe sua personalidade, não passa de uma fantasia de palhaço para esconder a figura melancólica de Jimmy McGill, frágil e traumatizada.

Jimmy e Kim viram comparsas após o desfecho da quinta temporada. Jimmy percebe o quão ardilosa Kim pode ser, e ambos prometem manchar a carreira de Howard. A partir de planos inescrupulosos, os episódios acompanham ambos destruindo gradualmente sua reputação, até chegar num desfecho fatídico e mirabolante, levando Howard a encontrá-los no apartamento. Em paralelo, Lalo decide incluir seu advogado no plano de vingança contra Gus Fring, coincidindo estar no local junto ao “desconhecido” Howard. O assassinato a sangue frio do advogado é um impacto visceral, o que rende reações imperdíveis tanto de Bob Odenkirk (que por mais de uma década acata com maestria as necessidades do seu personagem) quanto de Rhea Seehorn, na melhor atuação da temporada ao refletir uma nova faceta até então desconhecida, mas também por explorar as angústias profundas da protagonista.

No nono episódio, quando Lalo decide ir até o laboratório construído por Gus, o Salamanca se depara com Fring dentro da instalação. Numa dinâmica excelente entre Giancarlo Esposito (excepcional ao mostrar uma vulnerabilidade jamais vista) e Tony Dalton (criando uma presença hostil e imprevisível), encerra o arco do melhor antagonista da série, que subestimou a inteligência do gerente do Los Pollos Hermanos. O nono episódio coloca um ponto final em vários arcos e subtramas, deixando o caminho livre (4 episódios) para as cenas em preto e branco – para não dizer pinturas filmadas -, e o futuro de Gene, formando um epílogo eficiente e memorável.

“Você está dentro, ou está fora?”

Esta frase é dita por Gene para Jeff (Pat Healy) no décimo episódio, Nippy, que começa a nos aprofundar no pós-Breaking Bad com as cenas em preto e branco, até então restritas nas temporadas passadas no começo dos episódios iniciais. Para Gene, estar dentro e estar fora são caminhos inevitáveis na vida, e Jeff está num conflito entre querer saborear as vantagens de estar no jogo ou manter-se na legalidade. Por ser envolver com alguém como Gene (e o nome soar como Jimmy não é coincidência), é fácil saber qual lado Jeff escolheu.

Afinal, esse é o lema moral do universo Breaking Bad. Estar dentro do jogo, ou estar fora dele. Aguentar as consequências, positivas e negativas, dessa escolha. Walter White se encontrou dentro do jogo como Heisenberg, seu ego e sua ganância foram agraciados e ele se tornara aquilo que vemos no fim, mesmo que, para isso,  tenha dizimado sua família e destruído tantas outras. Gus Fring é um jogador nato, consciente que essa escolha não o permitirá ter um fôlego de paz e tranquilidade, como estar num balcão do bar flertando com o garçom; sua vida não lhe permite tal privilégio. Kim também decide entrar nessa, e lhe restou apenas um sentimento de culpa preso na garganta escondendo um segredo cruel e criminoso. Já Mike sofre por ter que manter distância da neta ao levar uma vida perigosa e obscura. Nem preciso comentar de Saul, que parece ter nascido dentro do jogo, tendo Gene como a representação personificada de uma vida marcada por más escolhas.

Gene e a máquina do tempo

Breaking Bad, El Camino e Better Call Saul são, em última instância, sobre tragédia. Como as escolhas de seus personagens, mesmo que bem intencionadas, têm consequências que podem gerar cicatrizes profundas e irreparáveis. Saul é Saul porque perdeu o irmão Chuck (Michael McKean), decorrente de um falso processo movido por Jimmy; foi responsável por levar um Howard inconformado ao seu assassinato; além de se afastar do amor da sua vida.

No fim, resta a persona Gene, identidade falsa conseguida por Saul no final da série original. Se entendemos que Gene se sente frustrado por não poder ser mais Saul Goodman, ao decorrer da série, sabemos que sua postura se deve ao fato dele viver na pele de Jimmy novamente, frustrado e derrotado pela vida. Mas como Chuck alertava, Jimmy sempre seria um trambiqueiro, e é através de esquemas de roubos que Gene encontra um subterfúgio para escapar daquela mediocridade. Contudo, as bebidas, as prostitutas, os pequenos privilégios reconquistados por Gene soam antiquados na situação em que ele se encontra; perseguido, inseguro em cada virada de esquina, com um passado traumatizante, vivendo uma vida monótona e insuportável, bebendo como se estivesse num conforto. Está tentando se deslocar da realidade ao preencher seu vazio com futilidades.

Por outro lado, Kim parece não se contentar com a nova vida que leva. Há um sentimento de culpa que se mantém constante no ar, e a única maneira de expor é assumindo à mulher de Howard o que acontecera. Prosseguida de um choro no ônibus como forma de expulsar aquele desespero entalado, filmado brilhantemente por Gilligan ao apenas deixar a câmera centrada na atriz, que oferece uma atuação marcante.


No último episódio, vemos Gene finalmente ser pego pelas autoridades, após, movido pela mesma ganância que o levara para o colégio de Walter, ter sido denunciado pela senhora interpretada sutilmente pela famosa Carol Burnett. Já na delegacia, a cena que enquadra Gene e o telefone no qual é permitido fazer a ligação é ironicamente engraçada, enquanto Better Call Saul é o slogan do advogado, Gene nem tem alguém que o ajude para ligar; familiar, amigo, colega, as relações humanas foram reduzidas a zero.

Resta a Saul Goodman um último ato, resistir à prisão e se safar de todos os crimes cometidos. Porém, como dito, esse universo é sobre escolhas e tragédia, nenhum personagem passa ileso de um desenvolvimento comandado por Gilligan e Gould. Dessa forma, a série subverte as nossas expectativas quando, ao pensarmos que Saul vai mais uma vez dar um show de malandragem, assume seus erros e crimes em frente à juíza, quase como numa catarse onde tudo que o estava acumulando é despejado por meio de palavras e sentenças. De 7 anos conquistados por um acordo, sua pena vai para 86 anos, mas com a conquista de livrar Kim de qualquer suspeita e envolvimento. Saul manipulou pela última vez, não para sair por cima, mas para deixar sua amada presenciar suas confissões e livrá-la da lei, praticamente sua última cliente. E, desde já, Saul assumindo a culpa pela morte do irmão, através de uma atuação irretocável de Odenkirk, é uma das cenas mais dolorosas feitas para a televisão.

Assumir a culpa e o nome verdadeiro – “O nome é McGill”  – é destruir por completo e em definitivo a fantasia de Saul Goodman, que serviu como uma cortina de um homem atormentado, mesmo que seja lembrado para sempre como o advogado (a cena dos presidiários cantando a música tema deixa isso claro.). Mas também significa oferecer um pouco de justiça numa série onde os vilões são tratados como mocinhos e saem, de um jeito ou de outro, impunes. Como Chuck McGill dizia, depois copiado pelo irmão: Que se faça justiça, ainda que o céu caia. 

E é interessante notar como Peter Gould (que dirigiu e escreveu o último episódio) tratou de salientar como a prisão continua semelhante à vida que Gene levava. Os paralelos visuais; o foco na máquina de massa, o preparo da massa do pão e do cinnamon roll, o cozimento, pontuando como a diferença entre estar na prisão e estar foragido é mínima, porque sua vida já estava condenada pelas suas escolhas. Exemplo de como os criadores articularam a linguagem visual da série para também contar a história, não tratando a composição visual como uma mera plataforma do roteiro.

Nos instantes finais, sobram Jimmy e Kim como no começo da série. Encostados na parede, num canto iluminado por um feixe solar, compartilhando o cigarro. Contudo, a parede do estacionamento dá espaço para a gélida parede penitenciária, o Jimmy advogado dá lugar para o presidiário, e a Kim, de advogada honesta para advogada dúbia e ardilosa. Constatando como Gilligan e Gould criaram uma obra-prima complexa, onde acontecimentos, sejam pequenos ou grandes, moldam seus personagens por completo. Não há retorno, e máquinas do tempo só existem na ficção. A humanidade está condenada aos seus próprios atos.

Na minha crítica da quinta temporada, escrevi no título: “Better Call Saul atinge o nível de Breaking Bad”, ainda estabelecendo erroneamente um grau de comparação entre as duas, como se houvesse a obrigação de uma ser melhor que a outra. Assim, essa última temporada prova que a série não precisa de comparação alguma, sendo uma obra original autêntica com rumos próprios, abrigando uma história independente que “apenas” acrescenta camadas à trama iniciada em 2008. E isso fica ainda mais concreto quando as participações (excelentes, aliás) mais esperadas desde 2015, de Bryan Cranston e Aaron Paul, passam como “mero detalhe” no meio de uma temporada incomparável – e de seis anos formidáveis.

Como Walter White diz na sua confissão tardia – e verdadeira – à Skyler:
“Eu fiz por mim.”

Caberia perfeitamente na lápide de Jimmy, Saul e Gene.

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Sobre o Autor

Thiago Pinto

‘’E quando acabar de ler a matéria, terá minha permissão para sair’’

-Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge (2012)

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