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Arthur Fleck – O Início, o Fim e o Meio do Vitimismo e do Desvario

Escrito por Ricardo Ramos

“Tente me ensinar das tuas coisas. Que a vida é séria e a guerra é dura. Mas se não puder, cale essa boca, Pedro, e deixa eu viver minha loucura.”
(Meu Amigo Pedro)

Alguns momentos que leio Watchmen ou assisto a sua adaptação cinematográfica, minha mente pratica um exercício de imaginar a substituição daqueles personagens maravilhosos pelos pesos pesados icônicos da DC Comics. O mesmo que tentei fazer após que assisti Coringa do Todd Philips. Muitas pessoas falaram que poderia ser qualquer personagem ali, fosse de quadrinhos ou não, que o resultado seria o mesmo. O homem que passa por distúrbios mentais, com uma vida desgraçada, ignorado pela sociedade e que chegou ao seu limite. Talvez faça sentido. Mas tem coisa mais Coringa do que isso?

O filme de Todd Philips apresenta uma levada no melhor estilo Maluco Beleza, onde Arthur Fleck vai controlando sua maluquez misturada com a sua lucidez no meio que o turbilhão do sistema e do maremoto que vai destruindo a sua vida pessoal. Lidar com o fracasso, com o derrotismo, com a falta do amor ao próximo e sua mãe sonhadora. É um pesado fardo mas que ao mesmo tempo ele leva o fato de ser uma pessoa que nasceu para ser um agente de alegria para os outros. Quando ele assume para si ser o ativo da revolução dos oprimidos de Gotham City, Arthur Fleck entende que é uma forma de levar alegria para o povo. A revolução.

“A minha enfermeira tem mania de artista, trepa em minha cama, crente que é uma trapezista. Eu não vou dizer que eu também seja perfeito. Mamãe me viciou a só querer mamar no peito. Ehê, ahã! Quando acabar o maluco sou eu!”
(Quando Acabar o Maluco sou eu)

Não considero válido usar a imagem do personagem do filme como um “símbolo” nas recentes manifestações que estão ocorrendo ao redor do mundo atualmente. A revolução contra os poderosos, ou o sistema da podridão de Gotham é o cenário para a verdadeira face de Arthur Fleck aflorar. Mas ouso dizer que mesmo não existindo pessoas o seguindo e levantando essa bandeira revolucionária maquiada de palhaço no filme, o Coringa surgiria do mesmo jeito. Ele é a válvula de escape. É o motor ligado de Arthur. E que é iniciado sempre em sua dança.

“Por que cargas d’águas. Você acha que tem o direito de afogar tudo aquilo que eu sinto em meu peito.”
(Sapato 36)

Arthur Fleck é um personagem sofrido. Um personagem que tem um pesado fardo, mas que muitas vezes, ele mesmo enriquece bizarramente o peso desse fardo. Ele apanha da sociedade de todas as formas. Mas isso também não significa que ele seja um coitadinho. O filme, que tem uma forte crítica social que há tempos grita nos EUA, às vezes dá a sensação de criar um ar de vitimismo ao personagem. E muitas vezes ele abraça isso. O público abraça isso. Onde ele apoia seus argumentos, ou disfarça os seus argumentos, para chegar a insanidade do Coringa nisso. Quando ele tem seus argumentos confrontados pelo personagem Murray Franklin de Robert De Niro, como se fosse uma bronca de um pai, ele fica mais nervoso, a ponto de quase perceber que é algo estúpido beirando à “pirraça” de um cara grande. Mas ele tem o seu transtorno mental causado por uma série de fatos. Como por exemplo a falta de uma figura paterna mais caridosa. Já que seus exemplos de pai foram os ex-companheiros violentos de sua mãe. E Arthur procura muito essa figura paterna no apresentador e no Thomas Wayne. E isso contribui para a formação do personagem.

“É sempre mais fácil achar que a culpa é do outro, evita o aperto de mão de um possível aliado. Convence as paredes do quarto, e dorme tranquilo. Sabendo no fundo do peito que não era nada daquilo.”
(Porque os Sinos Dobram)

A involução de sua sanidade, ou quando sua insanidade realmente mostra a sua cara, é medida por suas risadas. Ao longo da película acompanhamos as gargalhadas causadas pela risada patológica, também chamada de afeto pseudobulbar ou labilidade emocional. No início era sofrida, agoniante, beirando ao desespero. As risadas além de desesperadoras, fazem parte de um método do personagem para tentar se enquadrar no mundo. Um bom exemplo é a cena em que seu colega de trabalho faz uma piada com o anão, ele gargalha e, ao sair da vista deles, subitamente para, com a expressão séria, dando a entender que ele só fingiu que achou aquilo engraçado para poder se encaixar na situação. Outro termômetro de transtorno mental são as risadas fora de hora. Como quando ele está no bar assistindo ao show de comédia, e só ri quando a piada acaba.

Mas quando o Coringa realmente surge, a risada muda. As risadas se tornam prazerosas para o personagem. É a sua evolução. É quando ele se livra dos grilhões que considera impostos pela sociedade, pelas mentiras e maus tratos da mãe, pela violência doméstica quando era criança, da busca frustrada pela figura paterna e de suas próprias limitações que ele se impõe. É importante salientar que nesse momento, não existe mais Arthur Fleck. Nesse momento ele se matou. Até o enquadramento muda. Antes da icônica cena da dança na escada, vemos a câmera focando por cima. Como se o mundo pesasse nas costas do Arthur. E depois muda focando de baixo para cima, mostrando como ele cresceu. Mas vamos lembrar que o filme é contado pela ótica de um homem conturbado mentalmente.

“Eu sou o medo do fraco. A força da imaginação. O blefe do jogador. Eu sou, eu fui, eu vou!” (Gita)

O mundo particular de Arthur Fleck é atingido como um Trem das 7 desgovernado da realidade da vida. E ele não é capaz de lidar com rejeição e o fracasso que estão à bordo. Então somos levados para uma viagem em que não sabemos a linha tênue entre delírios e realidade. Assim como o relacionamento de sua vizinha foi tudo uma viagem de sua cabeça. Podemos discordar de outros momentos também? Como por exemplo a batida da ambulância na viatura onde o personagem está preso, e acontece aquela ovação. Será que aquilo aconteceu mesmo? Ou foi um delírio onde Arthur recebe o tão sonhado reconhecimento do publico finalmente? Seria o final do seu grande ato que começa no programa de TV. Uma cena me questionou é quando Arthur confronta Thomas Wayne no banheiro do cinema. Arthur está apoiado em uma pia. Quando acontece o corte, ele está na mesma posição. Logo após acontece a cena da geladeira. Será que realmente existiu essa conversa? Ou ele teve outro devaneio?

O Coringa de Todd Philips tem várias camadas e diversos caminhos que podemos nos sentar em uma mesa de bar e conversar durante horas sobre o que cada pessoa entendeu e assimilou do filme. Isso somado com uma atuação monstra do Joaquim Phoenix. Mas buscando a discussão que foi recorrente: qual é o Coringa desse filme? Vamos entender que o personagem sempre foi uma incógnita em todos os seus 80 anos de existência. Nem a própria DC Comics tem algo definitivo para sua origem. O mais próximo é A Piada Mortal de Alan Moore, que definiu uma espécie de origem plausível para o personagem. Mesmo assim, sem nunca dá um simples nome próprio para ele. Vale lembrar que A Piada Mortal só veio a ser considerada cânone depois da reformulação Renascimento da DC Comics. Mas ao mesmo tempo a editora considerou a existência de três Coringas no universo. Fato que até agora não foi publicado mais detalhadamente, mas que sabemos que terá uma edição futura sobre isso. Seja o Jack Napier do Jack Nicholson, ou o elogiado Coringa de Heath Ledger, o contestado de Jared Leto. Ou pode ser o Coringa dos desenhos de Bruce Timm, ou às inúmeras versões dos quadrinhos. Pegue todo o excesso, prazeroso, de versões dos personagens, e você pode abraçar e aceitar a versão Arthur Fleck. Sim ele pode ser o Coringa de algum lugar.

Se lembra do exercício mental que eu falei no primeiro parágrafo? Então realize-o usando outros Coringas.

 

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Sobre o Autor

Ricardo Ramos

Gibizeiro, escritor, jogador de games, cervejeiro, rockêro e pai da Melissa.

Contatos, sugestões, dicas, idéias e xingamentos: ricardo@torredevigilancia.com