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Aquarius (2016): Resistência à demolição

Escrito por Thiago Pinto

Aquarius não é um exercício de gênero, mas de brasilidade. A visão lúcida de Kleber Mendonça Filho diante do cenário brasileiro – as dificuldades profundas sofridas por um país marcado pela desigualdade, da riqueza cultural promovida pela diversidade notória, da violência à arte urbana, da favela ao condomínio de luxo – amplia os horizontes da função do país no longa, não sendo só um espaço cinematográfico para os personagens contracenarem, mas uma amostra concreta sobre as contradições brasileiras. 

Por se tratar de um filme nacional, dirigido por um dos maiores expoentes da direção no país, há de se esperar certo saudosismo às nossas próprias referências culturais, uma exaltação intensa do que existe de melhor no Brasil. Contudo, logo nos primeiros minutos, a protagonista Braga coloca um CD no rádio do carro, a música era nada menos do que Another One Bites The Dust, da banda Queen. Oras, um filme brasileiro não precisa – e nem deve – se submeter à negação de fontes externas de cultura, afinal, algo marcante nos dias atuais é a forma com que as outras culturas se aproximaram, e de certa forma se misturaram, em vários setores da sociedade brasileira. E a coragem de Kleber ao assumir essa identidade conflitante, fazendo com que a paixão da protagonista seja exemplo dessa mescla de gostos e culturas distintas, deixa ainda mais autêntica – e autoral – a sua visão inserida na obra.

O filme parte da demolição planejada por uma construtura do condomínio Aquarius. A construtora, contudo, tem um empecilho para dar continuidade ao projeto: a única dona que sobrou no prédio inteiro, Clara (Sônia Braga), nega impiedosamente qualquer oferta para compra do apartamento e não abre espaço para negociações, independente do valor oferecido. As razões para suas decisões nunca ficam concretamente evidentes, mas tampouco é necessária a explicação destas, já que, um dos principais objetivos de Aquarius é justamente demonstrar, por meio das imagens, das músicas, das memórias, entre outras ideias, a força da relação afetiva da dona para com o apartamento. Não é apenas um espaço substituível e passageiro, porém, um local onde ocorreram momentos únicos e especiais, mas também casuais e banais, todos estes que constituem a vida de uma pessoa, e qual ato seria mais honesto do que a tentativa de assegurar e proteger suas memórias? 

E a partir do momento que o roteiro, também escrito por Kleber, estabelece a luta incansável de Clara para resguardar suas memórias e sua história dentro do apartamento, a protagonista ganha uma dimensão profunda sobre sobrevivência; se manter e se sentir viva. Braga vive intensamente cada momento, seja participando de uma festa, se relacionando com um homem ou presenciando a conversa banal dos filhos, ela constantemente adquire e constrói memórias. Do mesmo modo, as cicatrizes, internas e externas, das dificuldades e problemas enfrentados por ela, como por exemplo o tratamento de câncer, que retirou uma de suas mamas, – e embora o tratamento não seja importante pra trama, as consequências deste são – formam o caráter persistente de Clara. Em uma aparente cena passageira, no banho, vemos apenas um seio enquanto o outro, ausente, foi retirado por conta do câncer de mama. Contudo, essa consequência drástica não afeta em nada – e nem deveria – a autoestima de Clara, e a direção de Kleber tampouco torna sensacionalista a abordagem da saúde de Clara.

Essa característica em particular trata de ressaltar a resiliência da protagonista, já que, quando ela chama um garoto de programa para satisfazê-la, tira o seio para fora e deixa o corte escondido na camisa, não como um ato de vergonha, mas de resistência. Embora fragmentada por perdas irrecuperáveis, tratamentos difíceis, com o apartamento ameaçado pela construtora, Clara mantém a força que lhe possibilita prosseguir na vida, persistindo no sexo, no mar, no edifício Aquarius; buscando prazer e a constituição – ou conservação – de memórias, o valor incalculável da vida. Tudo isso carregado emocionalmente por uma atuação brilhante, por compreender a personagem e os momentos singelos de respiros e olhares, de Sônia Braga.

A abordagem psicológica e física de Clara seria suficiente para o roteiro de Aquarius, mas Kleber, como dito, tem uma visão pertinente sobre o cenário brasileiro, e não só emprega uma visão crítica e reflexiva acerca do caráter contraditório do território nacional, como também aproxima o espectador de elementos concretos da desigualdade, seja nos ambientes distintos que se inter-relacionam, ou nas dificuldades casuais dos personagens. 

O diálogo sincero e completamente honesto entre a protagonista e o sobrinho Tomás reflete como a consciência social é importante na formação dos brasileiros. As dificuldades estão tão intrínsecas à história brasileira, que saber compreendê-las parece uma lição passada de geração para geração. Se o filme é sobre herança afetiva, memórias e lembranças, uma das heranças que Kleber reconhece ser a mais importante é justamente o reconhecimento dos problemas sociais, raciais e econômicos que geram e mantém essa realidade perversa. E a escolha do diretor da conversa ocorrer na faixa litorânea, onde as imagens contrastantes da cidade ficam visíveis e tornam-se plano de fundo, enaltece o quão imprescíndivel é para o brasileiro conscientizar-se da situação precária do país, capaz de gerar uma corrente hereditária de indignação.

Com a brasilidade sendo um dos temas principais de Aquarius, situações cotidianas tão bem representadas em tela contribuem para a concretização deste exercício autoral. Deixar o filho com a avó, a briga entre o dono da empreiteira e Clara, o aniversário da empregada, são todas situações distintas mas sintomáticas de um espaço onde as diferenças estão tão reunidas e – por que não? – naturalizadas. O embate entre a protagonista e, por assim dizer, o antagonista pode soar um tanto quanto clichê, mas é perceptível como as frases e os diálogos aparentemente comuns oferecem uma didática necessária; às vezes é preciso ir direto ao ponto, sem construções retóricas rebuscadas ou grandes discursos motivacionais; as escolhas simplistas dão voz ao ambicioso discurso do filme. 

Aquarius é sobre um país cuja memória não se perdeu, mesmo com tantas influências externas, empecilhos sociais e sabotagens internas. É sobre a persistência dessa cultura no meio de tanta contradição (a dona Braga insistindo em ficar no apartamento), é sobre tocar Queen no rádio mas reconhecer e valorizar as produções nacionais, ir no restaurante luxuoso e na laje da favela, criar um laço familiar com a funcionária, reconhecer desigualdades e se indignar com a tentativa de normalizá-las, é sobre o saudosismo nacional nunca explícito, que percorre o roteiro. 

É, finalmente, sobre o Brasil. O edifício inteiro persistindo, durando, se prolongando, mantendo-se vivo e intacto, ainda que tenha milhares de cupins no interior.

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Sobre o Autor

Thiago Pinto

‘’E quando acabar de ler a matéria, terá minha permissão para sair’’

-Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge (2012)

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