Detective Comics Quadrinhos

A confortável viagem na sinestesia de Paul Está Morto

Escrito por Marcus Santana

Muito se idealiza sobre o passado. Existe sempre uma aura de sagrado em tempos anteriores pois o distante parece irretocável. Na literatura, Luis de Camões já demonstrava essa questão em Os Lusíadas, onde os portugueses em vias de desembarcar e explorar as Américas no século XVI enfrentavam criaturas que iam além da compreensão humana em mares nunca antes navegados. Na Idade Contemporânea não é necessário ir muito longe para alcançar um período onde o real e fantástico se entrelaçam: a segunda metade da década de 60 do século XX isso era visto tanto na música quanto nas histórias em quadrinhos, pois nem a lama de Woodstock foi capaz de sujar essa época.

Nos quadrinhos, a editora Éric Losfeld trazia ao público europeu cores berrantes e viagens psicodélicas que muito se questiona a respeito da sobriedade de seus autores. Barbarella, Kris Kool, Saga de Xam, Les Aventures de Jodelle e outras histórias estavam na vanguarda da narrativa gráfica em uma onda que até hoje não se desfez. O datado aqui não existe e o tempo nem sequer pode ser considerado relativo: na verdade, ele nem é cogitado. Por isso, todas essas obras continuam futuristas até hoje.

Kris Kool e Saga de Xam marcam o experimentalismo e psicodelia na narrativa gráfica até os os tempos atuais (IMAGENS: 50watts.com e formidablemag.com)

Investigando esse mesmo fenômeno no ramo da música, chegamos logo aos Beatles. Os rapazes, que eram o sonho de qualquer qualquer filha para se casar, deixavam para trás sua marca de bem-comportados. Tal atitude se tornou mais evidente em 28 de agosto de 1964 quando em um quarto de hotel Bob Dylan os apresentou a maconha. O quarteto até tentou disfarçar: lançou logo depois os álbuns Beatles For Sale e Help! que ainda trazia sua marca já conhecida, mas o logotipo do subsequente Rubber Soul, lançado menos de quatro meses depois do álbum anterior, já denotava que algo diferente já pairava não só no ar, mas também nos pulmões e na cabeça da banda mais célebre de Liverpool. Para nossa sorte, o “estrago” feito por essa e outras drogas já estava feito e os melhores álbuns dos Beatles foram lançados a partir daí.

IMAGEM: Comix Zone

Paul Está Morto se passa justamente nesse período: no ano seguinte ao lançamento de Rubber Soul e entre o lançamento dos aclamados álbuns Revolver e o Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. As cores das roupas, os experimentos nas gravações em estúdio, as discussões estressantes de uma vida que era dedicada quase que em sua totalidade ao trabalho dos músicos atacaram o hemisfério direito dos autores estreantes no mercado editorial brasileiro Paolo Baron (roteiro) e Ernesto Carbonetti (desenhos) em busca de uma narrativa livre sobre o que pode ter acontecido nos bastidores do que viria ser o ápice dos Beatles, mas que resultou na dissolução da banda cinco anos depois. O hemisfério direito do cérebro, responsável pela criatividade humana responsável por parir Paul Está Morto, é coincidentemente a mesma região mais influenciada pelos efeitos da marijuana, musa do grupo musical a partir de então.

Por isso mesmo, não dá para fugir da psicodelia gráfica em Paul Está Morto: as cores são extremamente vivas e ditam o ritmo da narrativa. As cores marcam a tensão, velocidade e linha temporal a cada quadro em que a história se desenvolve. As cores pulam, esparramam e fogem dos quadros quase espirrando no rosto do leitor, trazendo-o para dentro da história e o colocando como testemunha ocular da turbulenta vida particular que era abafada pelos sorrisos talvez forçados fotos para revistas e jornais, gravações de discos, aparições na TV e qualquer representação de mídia onde era praticamente uma obrigação passar a imagem de que os Beatles era uma banda formada por pessoas perfeitas, mas a verdade era muito diferente.

IMAGEM: Comix Zone

Como já bem denota no título, a HQ mostra a tentativa de abafar a notícia da suposta morte de Paul McCartney e suas irreversíveis consequências. A influência dos Beatles era tão grande a ponto de temer uma onda de suicídios em massa por fãs da banda. Era mais do que necessário que a situação nunca viesse à tona, inclusive buscando um hipotético sósia. O mais interessante dessa visão nas entranhas na história da música é o destaque dado a Geoff Emerick (engenheiro de som), George Martin (produtor) e principalmente Brian Epstein, empresário dos Beatles. Tais personagens costumam cair no esquecimento e seus nomes são apagados como marcas na area da praia, mas não aqui.

IMAGEM: Comix Zone

A edição da Comix Zone faz jus à questão gráfica da HQ. A impressão da Ipsis Gráfica mantém o nível das cores que, caso não fosse bem executado, estragaria a leitura. O papel couchê aqui se torna imprescindível para trazer as cores mais vivas e reluzentes possíveis da arte de Carbonetti, justamente como se via nos projetos gráficos oficiais que envolviam os Beatles de 1966 em diante. Como extras, temos depoimentos e comentários dos autores a respeito de seu roteiro e arte, e como trouxeram sua marca pessoal em uma história já tão conhecida e com personagens mais famosos ainda, ainda mais usando como referência imagens reais dos personagens. É difícil trazer algo novo para uma história que praticamente se tornou um conto do folclore mundial, ainda mais mantendo um ritmo quase musical à leitura.

Até hoje especula-se se Paul de fato é o mesmo ou foi substituído. Diversas teorias da conspiração são discutidas através de supostas mensagens subliminares nas capas de álbuns dos Beatles do Sgt. Peppers até Let it Be, último álbum da banda. No fim das contas, podemos somente imaginar. Nada é comprovado, e não sabemos se isso é o mundo real ou mais uma viagem psicodélica como tantas outras. Para nós, basta apenas se divertir com tudo isso, e a versão apresentada em Paul Está Morto cumpre esse papel.

Paul Está Morto
Paolo Baron (roteiro)
Ernesto Carbonetti (arte)
Thiago Ferreira (tradução)
Audaci Júnior(revisão)
120 páginas
24 x 17 cm
R$59,90
Capa Dura
Comix Zone
Data de publicação: 09/2020

 

 

 

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Sobre o Autor

Marcus Santana

O que seria de nós sem quadrinhos?