Em sua segunda aposta na bibliografia referente ao mesmo autor, editora Comix Zone retorna ao metafísico mundo do premiado quadrinhista francês Marc-Antoine Mathieu com A Origem, a primeira parte da epopeia de Julius Corentin Acquefacques, o Prisioneiro do Sonhos. Dessa vez, temos uma obra que logo de cara se questiona seu formato e número de páginas da edição nacional, mas pouco tempo depois o que se vê é que quem subestima o volume pelas aparências somos nós, os leitores.
Você realmente tem controle sobre si mesmo e suas atitudes? Pensa que é dono de seu próprio destino ou há alguém superior na hierarquia das ações responsável pelo caminho a ser trilhado? No campo espiritual, diferentes povos e culturas têm representações das mais diferentes formas, mas em todas elas é comum acreditar em uma entidade superior que religiosamente decide sobre nosso futuro, como o próprio Mathieu já refletiu em Deus em Pessoa. Passando pelo campo da vida real, durante diversas fases de nosso desenvolvimento somos apenas subordinados, comandados por nossos genitores, educadores, chefes… portanto, nossa liberdade é muito relativa e, por incrível que pareça, em determinados casos é melhor que assim seja para que liberdade não entre em conflito com libertinagem.
Julius é um funcionário público solteiro com sonhos confusos que vive em uma quitinete e trabalha no Ministério do Humor, responsável pela aprovação das piadas e pegadinhas a serem usadas pela sociedade. Certo dia, recebe em seu escritório uma página em quadrinhos de uma história intitulada A Origem, cujo significado é desconhecido em seu mundo.
IMAGEM: comicboom.com.br
Além disso, a página tem curiosamente como protagonista o próprio Julius. Após a estranha surpresa, Julius continua a receber outras páginas da mesma história, devidamente numeradas e contêm situações referentes ao passado, presente e até futuro do protagonista e pessoas próximas a si.
A edição nacional, apesar de também possuir o genial artifício vistos nas páginas 37 e 38 e seguir um alto padrão com capa dura, papel couché, páginas de guarda, mesma fonte de texto usada em Deus em Pessoa e etc., inicialmente assusta por conter apenas um tomo de uma saga publicada desde 1990 e que, até o momento, conta com sete volumes lançados em seu país de, ironicamente, origem. Dessa forma, é natural que se questione porque a Comix Zone não decidiu por compilar mais de um capítulo por edição, assim diluindo os custos de produção e venda. A resposta é simples, apesar de incomum: um número maior de páginas por edição prejudicaria a proposta principal da história, dada a metalinguagem oferecida pelo autor na narrativa. Tais dúvidas renderam inclusive um vídeo no canal oficial da editora, explicando exatamente o porquê de tudo isso.
Assim, a conclusão da leitura de A Origem deixa o leitor já ávido para a leitura do próximo capítulo da saga, que inclusive já foi anunciado pela editora brasileira e tem previsão de lançamento para julho de 2022. Intitulado O Processo, este é na verdade o terceiro capítulo da saga, fazendo propositalmente a a editora brasileiro pular o capítulo dois, batizado originalmente de La Qu…, assim não seguindo a ordem original de publicação. Mais uma vez a surpresa nos acerta em cheio: a saga não obedece necessariamente uma ordem cronológica de leitura, por isso mesmo cada parte pode ser publicada quando for, independente da sequência original.
IMAGEM: comicboom.com.br
Temos uma obra altamente recomendada para quem procura por novas experiências, pois é exatamente o que aqui será encontrado, tal qual em narrativas gráficas como Imbatível, de Pascal Jousselin ou Building Stories, de Chris Ware. É esperar para ver o que mais nos espera na intrigante jornada de Julius Corentin Acquefacques.
Prisioneiro dos Sonhos Vol. 1: A Origem
Marc-Antoine Mathieu (roteiro e arte)
Fernando Paz (tradução)
Comix Zone
Capa dura
48 páginas
28,5 x 20,5 cm
R$72,50
Data de publicação: 06/2022
Durante a CCXP 2017 tive a oportunidade de conversar com vários artistas convidados do evento. Assim, uma nova série de entrevistas começa hoje aqui no site. Para começar escolhi Pedro Mauro, desenhista brasileiro que atua nos quadrinhos europeus, principalmente Itália e França. Mauro nos contou como funciona o processo de criação das HQs por lá e suas diferenças com o mercado nacional e norte-americano. Confira!
Você ficou muito tempo afastado dos quadrinhos. Foi para a publicidade e fez ilustrações por lá. O que te atraiu para voltar à HQs aqui no Brasil e no mercado europeu, onde hoje você trabalha majoritariamente?
Eu fiz dois anos de quadrinhos de Western aqui em São Paulo. Nessa época o mercado ficou muito ruim. A editora fechou e eu fiquei desempregado. De repente eu tive que trabalhar e o único mercado que tinha para eu continuar fazendo meu trabalho que parecia com quadrinhos eram os storyboards para publicidade. Por isso entrei nessa. E nesse ramo fiquei quase minha vida toda, de 35 a 40 anos fazendo storyboards, aqui e para fora. Em 1996, visitando Nova York um amigo meu tinha um estúdio lá e me ofereceram trabalho. Me mudei com a família e fiquei 12 anos lá. Mas eu sempre quis voltar aos quadrinhos. Sempre brinquei e fiz páginas de Western e Cangaço…. mais para treinar mas nunca publiquei. Tenho alguma coisa inclusive guardada mas nunca fiz uma história completa. Mas sempre pensei em um dia voltar mesmo que fosse mais tarde. E consegui voltar 5 anos atrás e a publicidade ficou em segundo plano para mim. Estou praticamente só nos quadrinhos agora. […] Nos anos 60/70 desenhei o Pancho, um personagem bem à la Clint Eastwood de Western Spaghetti pois era o que vendia bem na época. O editor pediu um estilo bem estilo bangue-bangue italiano e foi quando criei esse personagem que era bem clássico de Sergio Leone e Clint Eastwood. Fiz isso por dois anos. Foi que o que fiz de quadrinhos na época antes de voltar agora.
Gatilho, novo trabalho autoral de Pedro Mauro
Você disse que tem um material guardado e que nunca publicou. Você pensa em revisitá-los? Além disso, por que você opta por histórias mais de época e não contemporâneas?
Porque na verdade o que mais gosto dos quadrinhos é a aventura. Uma aventura que conta, por exemplo, o desbravamento do oeste. No Brasil, gosto muito do tema Cangaço. Não era um desbravamento mas marcou a História do Brasil. Eu gosto de história. É lógico que existe uma história mais contemporânea das coisas mas prefiro algo mais para trás. Não sei te dizer porque, mas de repente é um gosto. Está em mim. Eu gosto de desenhar esse tipo de personagens do século passado como é o oeste americano. Desde criança eu gosto porque é aquele desbravamento de uma cidade começar a ser erguida, tudo uma construção das coisas… isso eu gosto.
Arte interna de Gatilho
Você hoje trabalha para o mercado europeu. Para a Bonelli (Itália), para a Glenát(França) que publicou L’Art du Crime… Você se considera mais um autor de escola europeia? Inclusive falando de cangaço, o Hermann (autor belga de HQs) publicou Caatinga que é um álbum europeu sobre a História brasileira…
Os europeus num modo geral, principalmente a Bonelli [editore], o Sergio Bonelli adorava o Brasil e o cangaço. Ele tinha cartazes do filme O Cangaceiro em sua sala. Visitei seu escritório e vi lá os pôsteres originais. Então isso realmente é uma coisa que o europeu gosta. Mas o meu estilo se encaixa mais no europeu pois a minha escola, meu estilo quando comecei era mais calcada e baseada nos artistas europeus e também nos americanos clássicos. Que eram Joe Kubert, [Burne] Hogarth, Alex Raymond, Milton Caniff… que eram mais de uma escola clássica americana mais parecida com o estilo europeu. Era aquilo que eu adorava além dos quadrinhos europeus. Acho que esse estilo da old school americana bem parecido com os europeus. Não sei… acho os americanos que vieram depois foram olhando os europeus para começar a fazer Hqs… eu imagino. A semelhança existe. Então esse estilo me cativava e era esse que a gente estudava. A molecada que começa hoje estuda mais DC e Marvel. Que tem grandes artistas, mas não é tanto meu estilo ou o que eu faço. A geração de hoje vê mais esse lado mais a minha geração estudava mais os artistas daquela época.
A Bonelli ela tem um processo de publicação bem diferente do resto da Europa. Eles têm quadrinhos que são mensais com 100 páginas cada. É claro que fica impossível repetir o ilustrador do interior de uma edição para outra. O roteirista é o mesmo, mas o artista é revezado. Como te chamaram para desenhar para a Bonelli e como é o processo que te escalam para fazer uma história deles?
É uma pergunta interessante. Perguntam muito isso porque o pessoal sabe mais como funciona o mercado americano por ter mais informações e material por aqui mas o [mercado] europeu o pessoal muitas vezes não sabe bem como funciona. Na verdade realmente eles trabalham com muito mais páginas por episódio. Quando fiz a primeira [HQ] quando o Gianfranco Manfredi me convidou […] quando comecei a voltar aos quadrinhos eu procurei o mercado americano pois eu conheço o pessoal daqui que trabalha para lá. Falei com o Greg Tochini, Joe Prado e tal… quando eu comecei a preparar trabalho para mostrar eu estava postando desenhos meus em minha página do Facebook. Desenhos normais, não voltados para quadrinhos. Piratas, mulheres… Pin Ups basicamente. O Gianfranco viu. Ele não estava na minha lista de amigos mas alguém compartilhou e ele viu aí ele me convidou por Facebook via inbox. Ele só me mandou uma mensagem particular se apresentando e disse que “estava criando uma nova série [Adam Wild] e buscando artistas para participar pois precisava de vários. Gostei do seu estilo de gostaria de saber se está interessado em fazer um episódio para mim”. Quando vi que era o Gianfranco até fui conferir em um exemplar de Magico Vendo para ver se era o mesmo cara! Aí eu respondi e na hora começamos a trocar e-mails. Respondi que estava voltando aos quadrinhos e ele disse que gostou, me mandou um roteiro e se eu gostasse a gente fazia a história. Li metade do script e falei “Tô nessa! Pode mandar!”.
Ele mandou (o roteiro) em italiano?
Mandou em inglês. Ele perguntou se eu falava italiano e disse que não. Somente inglês por ter morado nos EUA e ele disse que ia traduzir e me mandar. Depois de um mês ele mandou o roteiro de 110 páginas e me perguntou se eu queria fazer a continuação antes mesmo de eu começar o primeiro pois era uma história que tinha a continuação e ele não queria mudar o desenhista e com o prazo de dois anos e eu aceitei. Aí comecei a fazer. Fiz até umas 10 páginas primeiro, mandei para ver se ele gostava e a resposta dele foi “Ok. Perfeito! Continua” e desde então tô com ele já no quarto trabalho. Estou em uma nova série agora que vai ser lançada ano que vem, mas que ele pediu para não divulgar por enquanto pois vai ser lançada em maio e vou fazer os volumes 3 e 4 e já tem artistas fazendo os volumes 1 e 2 sendo que ele [Gianfranco] já está no 12º episódio.
Mas poderia dizer ao menos se é uma minissérie ou uma nova mensal?
Até ele falou muito pouco sobre isso. Ele me mandou o roteiro e estou desenhando. Mas ele disse que vai ser uma série mensal publicada em tamanho menor (formato Bonelli) em branco e preto e provavelmente a cores em formato maior para livrarias. Estou fazendo só a parte branco e preto. Não me disse ainda se vai ser uma série de 1, 2 anos ou se vai depender da aceitação do público como aconteceu com o Adam Wild que parou na edição 26. Mas tenho a impressão que pode ir longe. Mas ele não me confirmou.
O Gianfranco revisita as suas criações. Como é o Caso de Magico Vento que ele parou mas voltou agora. Adam Wild mesmo que tenha parado pode ser que no futuro volte…
Pode ser que volte porque tem um público grande que gostou de Adam Wild. Tanto que criaram um blog lá na Italia. Eu acompanho e quando anunciaram que ia parar esse pessoal fez um abaixo-assinado. Não lembro se foi de 3.000 ou 5.000 assinaturas e eles mandaram para a Bonelli. Público tem mas por algum motivo a Bonelli não continuou. Mas o Gianfranco sempre respondia “quem sabe volta…”. Ficou em aberto assim como o Magico Vento que está voltando em um especial agora.
Adam Wild de Pedro Mauro (reprodução: texwillerblog.com)
Vendo seu traço dá para ver uma influência muito grande do Sergio Toppi. É bem visível. Por que, em relação aos leitores brasileiros, o mercado europeu apesar de lançamentos ainda é um tanto tímido por aqui? O Sergio Toppi mesmo tem poucos títulos em português… E por que tão poucos brasileiros no mercado europeu? Há poucos “Pedros Mauro” por aí.
Muita gente pergunta porque a Bonelli não está aqui na CCXP. Acho que até vou sugerir para os organizadores ano que vem trazer alguém. Mas realmente o exemplo de Toppi é pouco publicado aqui. O que mais temos no Brasil é Ivo Milazzo, Milo Manara… mas aqui no evento sinto que o pessoal pergunta muito disso para mim “Por que seu trabalho não vem para cá?”. Acredito que aí falta ao editor ou editoras que invista. Porque tem mercado, desde que lance bem lançado. Que faça um trabalho bem feito. A Mythos que lança Bonelli aqui mas acho ainda tímido. Eles trazem, param… Não sei se falta divulgação mas tenho certeza que tem mercado…
Pode ser também o formato que é publicado…
Sim! Investir num formato maior. Quando visitei a Bonelli e conversei com o Gianfranco e que, apesar de aqui ter Tex por exemplo, primeira coisa que ele falou foi que “é, mas eles lançam (no Brasil) muito pequenininho” O formato deles é um pouco maior e agora a Bonelli está investindo em álbuns em formato maior como as edições francesas de capa dura para livrarias. Eles estão entrando nesse nicho pois a Bonelli é mais banca. Agora eles estão entrando em livrarias e a própria Bonelli já abriu suas próprias livrarias em parceria com editoras pela Itália. Então você percebe que ela está mudando o jeito de fazer. Acho que o Brasil precisa fazer a mesma coisa em relação à Bonelli.
Todos os exemplares da primeira impressão de Gatilho levados à CCXP foram vendidos no primeiro e segundo dia de evento, mas uma nova tiragem está programada para janeiro de 2018. Aos interessados, basta pedir para inserir seu nome da lista de espera pelo e-mail Gatilhohq@gmail.com
A Diferença Invisível é uma história tocante, interessante e didática. Todos os dias interagimos com alguém. De forma automática dizemos “como vai?“, perguntamos se “estátudo bem?” e temos como resposta (por nossa parte ou dos outros) um “tudo!“. Mas o que é esse tudo? Ele existe mesmo?
Por mais que pareçam fortes do lado de fora, por dentro muitas pessoas pedem ajuda. Marguerite é mais uma francesa: Tem seu emprego, namorado, bichos de estimação, tarefas diárias, cuida de sua vida… mas ainda assim se sente desencaixada do resto.
Ela tem dificuldades em realizar ações que para muitos são simples, como se relacionar com colegas de trabalho, viajar, ir à festas, usar roupas de determinados tecidos e até um despertador. Não entende piadas e um fim de semana longe de casa já é um estorvo. A solução encontrada durante grande parte de sua vida foi viver em seu casulo. Mas um casulo, apesar de protetor, é frágil. Em algum momento se quebra e é necessário encarar o que há fora dele.
Graças à esse déficit social Marguerite descobre que tem a Síndrome de Aspenger, uma variação do autismo. Ela não se abate com isso. Finalmente ela está livre e se sente levada a sério e a partir daí começa a se redescobrir.
Todas estas dificuldades vividas por Marguerite e mais de 70 milhões de pessoas ao redor do mundo são apresentadas em A Diferença Invisível, publicada no Brasil pela Editora Nemo. A obra traz ilustrações de Mademoiselle Caroline e roteiro de Julie Dachez, que é ninguém menos que a própria protagonista Marguerite.
O número total de autistas equivale a 1% da população mundial. A sua perseverança mostra que não há o que é impossível de se fazer, se sim de ser feito de alguma outra forma. A vida para muitos precisa ser adaptada, e é assim que se segue. Assunto que, aliás, é pouco visto em HQs. Para quem é interessado em pesquisar sobre situações similares, a HQ Parafusospublicada em 2014 pela Editora Martins Fontes segue esta linha.
O uso de cores (que no início da HQ limita-se ao preto, branco, cinza e vermelho) vai se diversificando ao longo da história a cada nova descoberta de si mesma feita por Marguerite. Sua vida agora é outra: mais colorida, apropriada e dinâmica. O traço leve e simples de Caroline denota o tom direto de como o assunto é tratado na obra.
Um anexo chamado O que é Autismo? ao fim da edição esclarece também outros ponto importantes da síndrome. Dachez se tornou uma grande pesquisadora sobre o assunto. Vários textos e trabalhos seus podem ser consultados em seu bloghttp://emoiemoietmoi.over-blog.com/ (em francês) que ajudam principalmente a quem ainda tem dificuldade em se adaptar a este novo mundo que se revela para cada um deles. No Brasil também há instituições que trabalham para entender, identificar, tratar e a conviver com a situação, seja este indivíduo o diagnosticado ou pessoa próxima, e informações podem ser consultadas em http://autismobrasil.org/, por exemplo.
A edição da Nemo não foge do padrão adotado em outras publicações da editora, em formato 24 x 17 cm e 192 páginascom papel offsetencadernado em brochura com orelhas e com edição e conteúdo muito fiel à publicação original com preço sugerido de R$44,90,com sua distribuição destinada à livrarias e lojas especializadas. Vale a pena a descoberta, seja você Marguerite ou qualquer outra pessoa.