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O Irlandês: O legado de Martin Scorsese

Scorsese, Pesci, De Niro e Pacino. O conjunto desses nomes soa como os Vingadores do cinema de gângster, e não é por menos. Ambos se consolidaram nas histórias de máfia que traziam um mix interessante entre drama e crime. Enquanto De Niro e Pesci fizeram seus nomes acompanhados de Scorsese, principalmente em Os Bons Companheiros (1990) e Cassino (1985), Pacino trabalhou com Francis Ford Coppola em um das obras mais respeitadas da sétima arte: O Poderoso Chefão (1972). Com isso, O Irlandês esbanja profissionalismo e experiência de seus atores e diretor, contudo, o que mais impressiona é o fôlego admirável da trama, que se transforma em uma verdadeira síntese da filmografia de Martin Scorsese.

Logo nos primeiros segundos, temos um plano-sequência que corre um corredor inteiro para a revelação de um velho Frank Sheeran (Robert De Niro). A partir daí, ele começa a narrar a sua história, que aborda desde sua participação na Segunda Guerra Mundial até sua relação com o presidente sindicalista Jimmy Hoffa (Al Pacino). Aos que estão habituados com as densas e detalhadas narrativas dos filmes de Scorsese, não haverá estranhamento nenhum. O filme anda a passos curtos e lentos, apresentando de forma minuciosa a vida de Frank Irlandês e seu envolvimento com a máfia e os interesses de um sindicato de caminhoneiros. Nesse sentido, torna-se evidente o quão bem trabalhada é a relação entre os flashbacks e a narração de De Niro. Há flashbacks dentro de flashbacks, há relatos de personagens para com a câmera – algo marcante nos filmes anteriores – e também a apresentação dinâmica de novos rostos. Tudo isso acontece sucessivamente em O Irlandês, entretanto, Scorsese mantém a coesão da estrutura do roteiro, sem deixar o filme se perder ao apresentar tantos elementos em tão pouco tempo.

E talvez esta seja a magia de O Irlandês: não perder o fôlego em nenhum instante. O Lobo de Wall Street (2013) é um exemplo de filme que consegue, através de suas longas três horas, manter um nível de conexão com o espectador devido a vivacidade da narrativa. Para as três horas e trinta do filme da Netflix, Scorsese se utiliza do mesmo método para alcançar o êxito de manter o espectador completamente conectado à história e aos seus personagens. Grande parte desse método é a quebra de expectativa causada pelo roteiro de Steven Zaillian, adaptação da obra I Heard You Paint Houses, e pelo planejamento preciso das cenas. Esperando-se um ambiente sério e dramático, nos deparamos com fugas ao humor baseado em diálogos um tanto quanto desconexos em relação ao foco narrativo, semelhantes aos construídos por Quentin Tarantino.

A ambientação é constante nas obras de Scorsese, e aqui ela está deslumbrante. A constituição dos cenários se preocupa com a fidelidade dos locais para com a realidade; as luzes em neon, os típicos restaurantes da época e os carros transformam o filme na verdadeira representação do período. Para acrescentar ainda mais consistência, a trilha de Robbie Robertson cria o clima perfeito, equilibrando-se entre as variadas situações da obra.

Além disso, se utilizam textos para apresentar o destino de alguns personagens, principalmente aqueles que serão os principais condutores. Quando o personagem aparece pela primeira vez, ocorre uma curta pausa e o surgimento de um trecho como: “Nome, morto com três tiros no rosto, em 1980”. Tais inserções ajudam a trazer uma interessante oposição entre a ação e o destino. Ao passo que sabemos o que acontece com certas pessoas, conseguimos entender suas reais situações, mesmo que às vezes seja engraçado como pessoas “tão queridas” são mortas de formas viscerais. Isso demonstra o impacto que Scorsese sabe causar na audiência que acompanha seus projetos.

Quando se tem um roteiro estruturalmente sem defeitos, aliado a uma direção experiente, capaz de articular muitos elementos, fica mais fácil esconder atuações um pouco mais tímidas. Contudo, Joe Pesci, Robert De Niro e Al Pacino acrescentam uma enorme qualidade dramática, – observando que Harvey Keitel também está participando, mas tão pouco quanto se esperava – nos brindando com três atuações absolutamente incríveis, que transmitem o quão engajados estavam para entregar algo acima do nível. Robert De Niro interpreta Frank Sheeran com tamanha naturalidade que assusta. Sua interpretação parece se dividir em três partes: o pai, o mafioso e o velho solitário. Quando é o pai, De Niro simplesmente entrega a representação perfeita dos pais da época, envoltos de uma família submissa e patriarcal, tendo que esconder suas relações com a máfia. Na pele de um mafioso, há certa insegurança e imaturidade do personagem, mas também frieza ao executar alguém.

Além dessas duas camadas, o velho Frank Sheeran consolida a formidável atuação de De Niro. Depois de tantas formas ao abordar seu personagem, o ator guarda uma carta na manga, trazendo vulnerabilidade e experiência para o agora debilitado irlandês. Nota-se como suas preocupações em relação a máfia não condizem com o mundo presente, deixando Frank um tanto quanto inadequado neste período. Ver tantas transformações, acompanhadas do desenvolvimento de Frank, cria laços emocionais entre público e protagonista. Embora tenha tido uma vida carregada de violência e mentiras, presenciar sua velhice é estar consciente de como as decisões durante a vida acarretam em consequências graves ao nosso legado – algo que discutiremos mais para frente.

Outro expoente da filmografia de Scorsese foi, sem dúvida alguma, Joe Pesci. Após tantos anos sem se juntar ao diretor, seu retorno estava sendo muito aguardado. E, para surpresa de quase ninguém, marca forte presença. Interpretando Russell Bufalino, Pesci está representando o estereótipo do senhor de idade mafioso. Um cara experiente e boa vida, que busca deixar os amigos próximos e os inimigos ainda mais. Seus negócios em si parecem meio confusos, porque não se sabe exatamente tudo o que ele comanda, mas, pelos relatos de Frank, devem ser significativos. Talvez a única coisa que fique faltando é a explosão de nervoso, que marcou todos os personagens do ator. A repetição excessiva de fuck’s e a postura meio narcisista ficaram de lados, dando ao ator alguém mais sóbrio e paciente. Existe sua versão mais velha, como a de Frank, e pode-se dizer que também guarda uma ótima dramaticidade.

Apesar destes atores terem tido ótimas performances, os holofotes centram-se em Jimmy Hoffa, que ganhou a vida através de Al Pacino. Por aparecer menos que De Niro e ter sua aparição lá para quase um terço do filme, esperava-se uma atuação mais tímida e contida do ator. Engano meu, porque, além da importância inerente do personagem para com a trama, Al Pacino nos presenteia através de uma das melhores atuações de sua carreira até aqui. Dito anteriormente, o que surpreende em O Irlandês é o fôlego de alongar uma trama por mais de três horas, além das surpreendentes quebras cômicas. O principal causador desse efeito é o próprio Al Pacino, já que sempre surpreende com algum traço de seu personagem. Mesmo que seja excêntrico, estratégico e totalmente orgulhoso, o presidente sindicalista guarda certa impulsividade. Suas motivações e ideais políticos também acrescentam na caracterização. Se Joe Pesci está mais contido, alguém deve soltar a voz e os fuck’s. A partir dessa impulsividade, o personagem se torna uma caricatura política e dita os tons do ambiente em que participa, principalmente na hora dos discursos inflamados.

Deixando explícita a qualidade dos atores, do roteiro e da direção, fica claro que The Irishman é ótimo e estará concorrendo aos grandes prêmios do ano que vem. Apesar disso, não pode se negar o quão bonito Scorsese trata sua carreira. O filme não aparenta ser uma homenagem aos tantos anos do diretor, mas sim a síntese de sua filmografia. É o resultado de todas as experiências e estilos, que foram se alterando ao longo do tempo, desde Taxi Driver (1976) até Os Infiltrados (2006), do Rei da Comédia (1983) até ao A Invenção de Hugo Cabret (2011). Sua colaboração com a sétima arte foi fundamental para tratar o cotidiano nos cinemas. Trabalhar com questões reais e práticas, sem fantasias e super-heróis, mas com aqueles que vivem na realidade patética que é o mundo. Há certa cena que Frank Sheeran já está bem debilitado e vai para a igreja rezar com o padre – um símbolo que sempre esteve presente na vida do diretor – na esperança de superar seu legado de criminoso. A maneira ampla com que se explora as consequências da vida do protagonista nunca foi tão trabalhada no passado do diretor, porém, sua vasta experiência aparenta querer discutir sobre o destino, colocando veteranos do cinema para mostrar o quão difícil é a manutenção do legado.

O Irlandês esbanja competência e fôlego, abordando drama, máfia, humor e política em mais de três horas. Com três atores lendários, a história tem o objetivo de revisitar o passado da conjuntura mafiosa que influenciava sindicatos e a política americana, no entanto, mirando no presente, deixando marcadas as consequências. Enquanto Frank Sheeran se mostra inadequado por conta de seu legado, tentando constantemente escapá-lo, Martin Scorsese caminha pela trajetória contrária de seu personagem, porque, aparentemente, seus últimos dias de vida não serão lamentando, mas valorizando o seu legado a partir da única coisa que o transformou no que é: fazer filmes.

Por Thiago Pinto

‘’E quando acabar de ler a matéria, terá minha permissão para sair’’

-Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge (2012)